O presidente eleito da Argentina , Alberto Fernández, tem diante de si um desafio não trivial: evitar que a derrocada econômica leve seu país a um estado terminal, similar à Venezuela bolivariana. As medidas que precisa tomar para isso se chocarão com a expectativa do eleitorado que levou o peronismo de volta ao poder.
Fernández recebe de Maurício Macri um país em estado crítico. Depois de girar em torno dos 10% nos últimos anos do governo de Cristina Kirchner, a inflação saltou para 26% em 2017, 34% em 2018, e a expectativa é que feche 2019 acima de 54%. O desemprego subiu de 6,5% para perto de 10%. Em pesos, o PIB deverá acumular queda de 2,4% nos anos Macri. Em dólares de 2011, porém, deverá cair de US$ 642,5 bilhões para US$ 445,5 bilhões.
Desde que o programa econômico de Macri começou a fazer água, com a revisão das metas inflacionárias em dezembro de 2017, as reservas cambiais desabaram de U$ 65,8 bilhões para US$ 43,5 milhões. Só na última sexta-feira, caíram US$ 1,8 bilhão, levando o próprio governo Macri a tomar uma medida emergencial: limitar a compra a US$ 200 por mês, recuando na liberdade cambial implantada depois que assumiu. O controle do câmbio é demonstração de que, embora derrotado, Macri se dispõe a colaborar com Fernández durante a transição.
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A dúvida é: até que ponto? As tarifas de gás e energia estão defasadas em quase 70%, como resultado da tentativa de deter a inflação. Estará Macri disposto a aumentá-las ou, agora que se prepara para liderar a oposição, deixará ao sucessor a medida impopular – e o risco inerente de protestos nas ruas?
O reajuste tarifário é apenas o item mais tangível da agenda dificílima de ajuste que Fernández tem diante de si. A principal razão do fracasso do plano econômico de Macri foi o gradualismo fiscal. O déficit primário foi de 4,4% do PIB em 2015, 4,8% em 2016 e 4,2% em 2017. Só em 2018 recuou para 2,2%. Deverá fechar 2019 pouco acima de 0,6%. Se Fernández tem a perspectiva de superávit em 2020, ela não virá sem alta nas tarifas nem sem o aumento já aventado em impostos.
O rigor fiscal é a principal exigência do acordo de US$ 50 bilhões fechado com o FMI no ano passado, o maior na história do fundo. A Argentina já sacou US$ 44 bilhões desse crédito e deverá, até o ano que vem, usar o que falta. Sem mais dólares, não dará conta de rolar as dívidas públicas, que cresceram de 52,5% do PIB para mais de 90% ao longo do governo Macri, pelo critério do FMI.
A questão diante de Fernández é, portanto, preparar algum tipo de calote. Mas qual? Quem ficará com o mico? O próprio FMI e os organismos bilaterais, que ele tanto atacou em seus comícios? Ou os investidores e credores privados? Qual será o rosto da segunda moratória argentina em pouco menos de 20 anos? A resposta dependerá da escolha do novo ministro da Economia, indefinida.
A maior dificuldade na implementação da agenda do novo ministro será política. Fernández enfrentará desafios nas duas casas do Parlamento. No Senado, apesar de o controle ter ficado com os peronistas, com 39 das 72 cadeiras (segundo a apuração até o momento), a bancada estará sob influência direta de Cristina, senadora e recém-eleita vice-presidente.
No comando da facção kirchnerista do peronismo, que contribuiu para a vitória com votação esmagadora nos principais subúrbios da Grande Buenos Aires, Cristina tem uma relação frágil com aquele que ela própria escolheu para encabeçar a chapa nas eleições. Até que ponto o pragmatismo de Fernández no poder – ele sempre foi mais ligado a Néstor – se chocará com o populismo K?
Na Câmara, o Cambiemos, de Macri, controlará a maior bancada, com 119 dos 257 deputados. A situação do novo presidente promete ser ainda mais difícil. Os resultados parciais atribuem 108 representantes à frente peronista. Mesmo que aliados elevem esse patamar a 120, será insuficiente para evitar sobressaltos para a Casa Rosada.
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Macri já afirmou que continuará na política. Embora derrotado, seu desempenho, com mais de 2 milhões de votos que nas primárias de agosto, o credencia para ser o principal líder da oposição. A Argentina emerge das urnas com o resultado mais polarizado desde 1983, única em que os dois maiores partidos somaram mais de 90% dos votos.
Tal quadro político prenuncia um caminho acidentado a Fernández. Ele será obrigado a decepcionar o eleitorado de esquerda que o elegeu, terá de enfrentar os fantasmas de Cristina e Macri, além de um cenário externo inóspito, com a perspectiva de novo calote na dívida, choques inevitáveis com o Brasil de Jair Bolsonaro e a incógnita sobre o futuro do Mercosul. Se driblar as intempéries, a economia argentina voltará a crescer até o fim do mandato. O mínimo que precisa fazer é afastá-la do rumo venezuelano. É provável, mas não está garantido.
Fonte: “G1”, 28/10/2019