Há um ponto comum na agenda pública brasileira, em vários domínios: as coisas tiveram que piorar muito para começarem a melhorar. Têm sido necessárias crises para deflagrar respostas a problemas coletivos.
O caso mais evidente é a Previdência Social: o diagnóstico e as soluções são conhecidos e a agenda de reformas é a mesma desde a década de 1990. Mas foi necessária uma conflagração no nível subnacional —com suspensão e/ou atrasos do pagamento de pensões e benefícios— para que as ameaças de colapso do sistema se tornassem críveis.
Na área tributária, as distorções do sistema são conhecidas há duas décadas. As propostas mudam marginalmente. Foi necessário se chegar a uma situação de caos criada pela proliferação de regimes tributários especiais para que se deflagrasse processo de reforma, cuja sina ainda é incerta.
Na área ambiental, foi só após as crises ciclópicas de Mariana e Brumadinho e a devastação na Amazônia que a opinião pública foi exposta “bestializada” à enormidade da crise, e parece que a questão adquiriu senso de urgência. Neste último caso há uma diferença importante: a emergência foi ativamente produzida pelo governo, que converteu crise crônica em calamidade.
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Esse padrão reativo de mudança institucional é claramente ineficiente. Os custos incorridos durante o período pré-crise são muito elevados (na área ambiental, a natureza do risco é singular estamos próximos do ponto de irreversibilidade dos danos). As soluções reativas também tendem a ser piores do que as produzidas fora da crise.
Mais importante: o padrão reativo afeta de forma desigual as diversas áreas de política. Há áreas em que as crises não se manifestam: há deterioração contínua da qualidade da intervenção pública sem deflagração de um senso de urgência.
Tome-se o caso do saneamento básico e da educação pública: neles, a grande tragédia é não haver tragédia. Há emergência quando pensões deixam de ser pagas, mas não quando os alunos não aprendem nada. A deterioração ocorrida chegou ao fundo do poço, mas não há senso de emergência e, portanto, não há resposta em termos de ação coletiva, ou essa é claramente insuficiente. A estrutura de incentivos é perversa.
A analogia com a situação analisada pela teoria dos jogos como tragédia de comuns, na qual a racionalidade individual conflita com a coletiva, é apropriada aqui. Ao perseguirem o auto-interesse no curto prazo, os atores contribuem para gerar uma situação em que todos perderão coletivamente no médio e longo prazo.
É como se estivéssemos condenados a um equilíbrio perverso: presos entre a armadilha da inação e a da ação induzida pela crise.
Fonte: “Folha de São Paulo”,