Alguns leitores jovens me interpelaram sobre o emprego do Manifesto Republicano de 1870 no artigo que publiquei no dia 28/10, tratando da crise. Tenho clara noção de que tal emprego parece algo estranho ao pensamento atual. Mas volto a ele, tentando iluminar um ponto: há um velho fantasma no porão. Este precisa ser aberto e seu ocupante trazido para a luz, sob pena de não se encontrar saída para o atual impasse.
[su_quote]O hábito de pensar o Estado como estando acima da sociedade aparece quase intacto nos comportamentos descritos no texto[/su_quote]
Qual a interpretacão mais comum deste impasse? Muitos têm apontado a seguinte ideia-força: a racionalidade econômica indica a necessidade de ajuste fiscal; os políticos não encontram forma de fazer isso – a paralisia piora o problema.
Esta análise poderia eventualmente ser corroborada por um dado: a percepção geral de que não há solução à vista. Encontrei uma medida clara desta maneira de ver as coisas numa apresentação fechada de uma pesquisa sobre a visão da crise pela população de São Paulo, feita pela Cause nesta terça-feira. Nada menos de 70% dos entrevistados simplesmente afirmaram que não acreditam em política.
Caso seja adotada a maneira de pensar implícita no diagnóstico racionalidade econômica / solução política resumida acima, tal manifestação dos cidadãos poderia eventualmente ser interpretada como presença de um quadro de desesperança maciça, um pessimismo muito forte em relação à capacidade daqueles em cujas mãos estaria a solução dos problemas para fazerem o que devem.
Apresento então uma alternativa: considerar o dado não como uma manifestação de pessimismo ou desesperança, mas como uma visão realista, pelos cidadãos, de que o sistema político, na forma como está agindo hoje, não tem capacidade operacional para resolver a crise. Ou, na via inversa, que a crise não tem natureza de espécie que possa ser suplantada na forma prevista pela análise ajuste fiscal / acordo político.
Por que não? Pelo fato também altamente sabido – mas pouco pensado – de que mais de 90% dos gastos governamentais aparecem nesse diagnóstico como impossíveis de serem cortados, como gastos obrigatórios, gastos “determinados pela lei”.
Trata-se de um corte qualitativo entre duas maneiras de gastar dinheiro, tida em geral como parte constitutiva da realidade, parte natural, parte que não se pode mudar — portanto um dado, não um problema.
Meu argumento é simples: tal corte qualitativo, longe de ser natural, é o próprio problema a ser resolvido – mas ele só aparece como tal com apelo ao passado.
Vamos de novo ao contraponto do Manifesto Republicano:
“A soberania nacional só pode existir e ser praticada numa nação em que o parlamento seja eleito pela participação de todos os cidadãos e tenha suprema direção e pronuncie a última palavra nos negócios públicos. (…) Dessa verdade resulta que, quando um povo cede uma parte de sua soberania, não constitui um senhor, mas um servidor. Em consequência o funcionário tem que ser móvel, revocável, eletivo”.
A questão dos republicanos era clara: ou a soberania nacional era de todos os cidadãos, e absoluta, ou uma parte desta soberania havia sido cedida a outro soberano, capaz de transformar o povo que deveria ser soberano único em servidor dos interesses de um grupo. E apontava o grupo capaz de agir desta forma: funcionários que não eram removíveis pela vontade do conjunto de cidadãos.
A referência direta do texto era o Imperador, funcionário irremovível e posto acima dos demais cidadãos, com fonte de soberania própria e hereditária. Como contraponto ao soberano popular, segundo a lei. Como problema a ser removido, segundo propunha o programa do partido.
Sei perfeitamente que a monarquia foi-se há muito. Mas recomendo ao leitor que ainda não o fez uma passada de olhos no belo artigo de Carlos Alberto Sardemberg, “Volte Amanhã, Tente de Novo”, publicado hoje no site. Ele associa a falta de competitividade da economia brasileira com um comportamento que parece atávico de funcionários com relação ao cidadão supostamente soberano:
“Quando [o cidadão] é atendido [pelo funcionário] agradece. Claro, deve mesmo, por educação, ser gentil e agradecer ao funcionário, mas, gente, é este que está ali cumprindo sua obrigação. A repartição tem de ser amigável com o cidadão. O funcionário é empregado do cidadão. Se o serviço público não funciona, não se pode passar a responsabilidade para as pessoas”.
A hierarquia entre funcionário do Estado e cidadão soberano aparece no texto como tendo sentido inverso ao de um soberano em relação ao delegado da soberania: como sendo aquela entre um grupo “coroado”se apresentando como detentor do poder e tratando o suposto cidadão soberano como subordinado dependente de favor.
Veja abem: a relação é descrita no dia de hoje, num texto que trata da questão crucial da perda de competitividade da economia no cenário mundial de amanhã. Ainda assim, pode fazer sentido reler agora o caso na óptica da filosofia política do império, das queixas dos republicanos sobre ela. A noção de que a responsabilidade é das pessoas, dos cidadãos, e que os funcionários estão acima dela – havendo problema, a solução fica para quem está em baixo – era exatamente aquela que definia o espaço do Poder Moderador, o poder pessoal do monarca, como aquele da irresponsabilidade.
O que veríamos então trazendo de volta a figura? Fora da lei constitucional há mais de um século, o hábito de pensar o Estado como estando acima da sociedade aparece quase intacto nos comportamentos descritos no texto.
Este o fantasma
O Manifesto Republicano de 1870, de outra época, tratava com um problema vivo e apontava para a remoção legal de um poder imperial. A remoção legal se fez, os hábitos sobreviveram. A solução da crise brasileira vai exigir pensar em colocar o Estado como subordinado do soberano popular também nos costumes.
Este fantasma brasileiro não tem nada a ver com a dicotomia neoliberalismo / keynesianismo, mas simplesmente com a história de um país que foi monarquia e no qual até presidentes populares sentem-se muitas vezes tentados a construir impérios, ainda que sejam baseados em clientelismo e corrupção – duas das belezas que colocam o Estado acima da sociedade.
Se isso fizer sentido, o conhecimento do fantasma pode levar a outra espécie de diagnóstico. A racionalidade apenas formal leva a considerar 90% do gasto público como algo que flutua numa esfera etérea, acima do controle da racionalidade econômica do equilíbrio orçamentário, acima do controle do sistema político expresso na confecção da lei anual de receitas e despesas, acima da capacidade dos cidadãos de querer gastos públicos sob controle do soberano popular.
Na visão dos republicanos de 1870 uma situação como essa poderia ser interpretada como reserva indevida para eventuais privilegiados, capazes de transformar os cidadãos em servos. Este era um problema claro para os eles – mas um fantasma invisível pela a racionalidade formal na análise da crise atual. Sem a discussão efetiva do lugar de Estado e sociedade feito com o conhecimento de nosso passado, o impasse apenas se agrava.
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