O momento é delicado para o governo. O dilema está colocado: conservar condições de governabilidade e existência política traindo a base de apoiadores ou honrar as promessas feitas à base e partir para o tudo ou nada contra Congresso, STF, Ministério Público e Polícia Federal.
A Câmara aprovar em caráter de urgência e em uma noite a Lei do Abuso de Autoridade é mais uma mostra de poder. Fazem o que quiserem ali, o governo é incapaz de impedir. Ocorre que, neste caso, o governo talvez nem queira impedir. Afinal, com as investigações circundando o antigo gabinete de Flávio Bolsonaro (e sabe-se lá que relações ele guardava com os demais gabinete da família…), é o próprio Jair quem fica acuado e passa a querer travar o trabalho da Polícia e da Justiça.
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Para isso, recebeu ajuda daqueles que outrora eram seus alvos preferidos. Primero, do STF: Dias Toffoli respondeu positivamente ao pedido de Flávio Bolsonaro de impedir investigações com base em dados do Coaf que não tivessem autorização judicial prévia. Com essa decisão, o Coaf, que antes era peça-chave na investigação da corrupção, perde muito de seu valor. O atual presidente, Roberto Leonel, indicado por Moro, que defendeu a instituição que preside, deve inclusive perder sua posição. Bolsonaro retribuiu à gentileza de Toffoli fazendo vistas grossas a outras decisões do STF, como a de Alexandre de Moraes que suspendeu investigações da Receita Federal sobre diversos cidadãos, inclusive ministros do STF.
Agora vem o Congresso. O mesmo que dia que viu a aprovação da MP da Liberdade Econômica viu também a aprovação da Lei do Abuso de Autoridade. Toma lá dá cá com a Câmara? O fato é que o PSL foi tíbio em sua oposição a essa lei e o próprio presidente parece pouco disposto a vetá-la integralmente.
Se quisesse honrar suas promessas de campanha, contudo, é exatamente isso que deveria fazer. A Lei de Abuso de Autoridade ameaça inviabilizar novas investigações, delações e prisões, colocando um sarrafo tão alto que o risco para magistrados e procuradores fique alto demais. Dentre diversas medidas que podem ter sua valia, salta aos olhos a exigência que mesmo o início de uma investigação já venha munido de provas suficientes.
Bolsonaro se colocou na campanha e no início do mandato como um defensor aguerrido da Lava Jato e das investigações de maneira geral. Colocou Sergio Moro no ministério. Agora, Moro está diminuído e desautorizado (aliás, será que não se manifestará sobre a lei de abuso de autoridade?). Já a possibilidade de se investigar novos suspeitos vai sendo reduzida a cada dia, seja pelo STF, seja pelo Congresso.
Ou mesmo pelo Executivo. Numa tacada só, Bolsonaro se disse responsável pela troca do superintendente da PF no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi (embora, segundo a Polícia, sua troca já estivesse planejada) e – segundo o site O Antagonista – exigiu a exoneração do chefe da Receita Federal no Rio Mário Dehon. Coincidentemente, tudo no estado do gabinete de Flávio, onde trabalhou Fabrício Queiroz.
A ideia de um Bolsonaro cruzado na guerra anti-corrupção derrete a cada dia. No entanto, seus defensores e militantes ainda esperam do líder uma resposta à provocação do Congresso. Sancionar a lei seria dar um passo impossível de conciliar com seu discurso passado. Como ele próprio pode estar na mira do Ministério Público e da Polícia, e baseando-me em seu histórico de carreira (e não no discurso midiático de dois anos para cá), creio que a defesa do próprio clã falará mais alto do que qualquer slogan que o presidente tenha usado para conquistar o voto popular.
Fonte: Exame, 16/08/2019