A possível condenação de um ex-presidente da República pelo TRF-4 por corrupção e as discussões que serão travadas sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância estão dando enorme visibilidade às questões relativas ao alcance da adjudicação judicial. Adjudicação é a atividade realizada pelos tribunais na resolução de conflitos. É o processo pelo qual os juízes, ao aplicar as leis, atribuem sentido concreto a normas e princípios. Para tanto dispõem de uma margem de discricionariedade – a liberdade de escolha entre diferentes alternativas legais, na qual está implícito um juízo de conveniência e oportunidade. Numa Corte Suprema, a função dos juízes é dotar os valores constitucionais de significado, levando em conta um texto legal, além de expectativas comuns de justiça e padrões éticos. Mas qual é a distância entre decisão discricionária e abuso de interpretação?
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A liberdade do intérprete não é absoluta e a interpretação não é uma subsunção mecânica do fato à norma. Juízes não são livres para atribuir qualquer significado que desejem às leis. Quanto mais se distanciam dos textos legais, mais abusos podem cometer. Os limites da discricionariedade, porém, são porosos. Como os tribunais são reativos, só agindo quando acionados, os juízes têm de responder às demandas que lhes são encaminhadas. Por isso não controlam suas agendas, o que faz com que a adjudicação possa dar vez à judicialização da vida política – algo inevitável em certos momentos, dada a necessidade de uma arbitragem judicial de conflitos não resolvidos pelas instâncias políticas. Esse fenômeno também acarreta mudanças significativas nos modos de intervenção na vida social e econômica. Em sociedades complexas, julgamentos dos tribunais superiores exigem um compartilhamento de poder e responsabilidade pelas decisões. Quanto mais polêmicos são os casos sub judice, mais esses tribunais dependem de complexas estruturas organizacionais.
Num universo burocrático como o dos tribunais, a responsabilidade individual dá lugar a uma responsabilidade corporativa. Talvez não seja possível sustentar a responsabilidade de um juiz individual por uma decisão, mas é possível sustentar a responsabilidade do Judiciário como entidade corporativa, lembra o jurista Owen Fiss, de Yale. O problema é que, como Hannah Arendt apontou ao discutir a banalidade do mal, durante o julgamento de Adolf Eichmann por crimes de genocídio, a responsabilidade corporativa pode ser um substitutivo fraco para a responsabilidade individual. Eichmann, que não tinha histórico antissemita, cumpriu ordens pensando sóem subir na carreira, sem refletir sobre a barbárie inerente à burocracia de que fazia parte. No caso da burocracia judicial, o risco é exponenciado pelo princípio da independência judicial, que deixa os cidadãos dependentes de Cortes que não podem ser responsabilizadas corporativamente por seus equívocos.
O protagonismo dos juízes e a judicialização da política – que cresceram na medida em que a Constituição incorporou em matérias antes tratadas por leis ordinárias – não são imunes a esses riscos. Constitucionalizar essas matérias foi um modo de converter política em Direito, o que multiplicou os focos de tensões, pois a judicialização reduz o espaço da esfera política. Quando vão além do papel de assegurar o respeito à ordem jurídica, esses tribunais são cobrados pelos efeitos de seus atos, sem que haja mecanismos institucionais para controlá-los. Compensa enfrentar esses riscos, em nome da concretização de direitos civis e sociais? Ou seria mais prudente optar pela autocontenção judicial, em nome da harmonia entre os Poderes?
A História registra não só protagonismos judiciais desastrosos, mas também experiências bem-sucedidas, como a promovida pela Suprema Corte americana sob a presidência de Earl Warren (1953-1969). Trata-se do caso Brown vs. Board of Education, que começou com o pedido de uma família negra para que a Justiça reconhecesse o direito de matricular a filha numa escola situada num bairro de famílias brancas. A implementação das decisões da Corte exigiu a substituição dos sistemas duais de educação, com escolas separadas para negros e para brancos, por um sistema unitário de escolas dessegregadas. Isso demandou novos critérios de escolha de alunos, novas rotas de ônibus entre distritos escolares e mudança curricular. Para assegurar o fim da segregação a Warren Courtdesenvolveu novas formas de avaliar a relação entre o direito à igualdade na educação e os remédios por juízes e enfrentou resistências corporativas da burocracia governamental. O empenho da Corte na afirmação da igualdade racial propiciou inovações processuais, levando a uma adjudicação alargada capaz de enquadrar essa burocracia e mudar a gestão de escolas. A partir do caso Brown vsBoard of Education, a Suprema Corte impôs reformas estruturais, dando ao princípio da igualdade o mesmo peso dado à ideia de liberdade, como valor constitucional. Alguns equívocos foram corrigidos pela gestão conservadora do sucessor de Warren, o juiz W. Burger (1969- 1986). Com nova configuração da Corte, ele procurou reverter processos antissegregação que ainda tramitavam e mudar entendimentos anteriores, mas não alterou na essência os avanços propiciados pela Warren Court.
O caso ilustra o que fora dito décadas antes por outro membro da Corte, O. Wendell Holmes Jr.: a vida do Direito não é lógica, é experimento. É a avaliação desses experimentos por nossos tribunais que precisa ser feita, para constatar se as mudanças ocorridas nas formas de adjudicação configuram desvirtuamento das funções judiciais ou se têm sido decisivas para assegurar a integridade da democracia – principalmente neste momento em que alguns políticos processados por corrupção denunciam uma aliança entre juízes e mídia, para criminalizar a política, enquanto outros pedem o fim da prisão em segunda instância e prometem “pôr fogo” em Porto Alegre.
Fonte: “Estadão”, 24/01/2018
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