O fato de o uso do celular estar se tornando a principal razão dos acidentes de trânsito não significa que as outras causas tenham desaparecido, ou mesmo diminuído
Faz pouco tempo, escrevi um artigo mostrando o crescimento vertiginoso do telefone celular como causa de acidentes de trânsito, não apenas no Brasil, mas principalmente nos países desenvolvidos. O fato do uso do telefone celular estar se tornando a principal razão dos acidentes de trânsito não significa que as outras causas tenham desaparecido, ou mesmo diminuído, em termos absolutos. Ao contrário, elas continuam firmes e fortes, contribuindo ativamente para os apavorantes 405,5 mil mortos anuais nas ruas brasileiras.
Entre as outras causas de acidentes de trânsito, dirigir embriagado tem lugar de destaque. A lei seca brasileira é radical. Está entre as mais duras do planeta e, por isso mesmo, entre as com eficiência questionável. Sua rigidez leva ao aumento da leniência dos agentes de trânsito e da própria sociedade que ela pretende defender. Afinal, um copo de cerveja não é visto pelos brasileiros como uma forma de se perder a noção das coisas e não poder dirigir. Aliás, a regra vale para vários países com índices de acidentes menores do que os nossos, onde o consumo moderado de álcool não é considerado razão para punir o motorista.
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O Brasil é famoso pelo rigor de suas leis. Nosso Estatuto da Criança e do Adolescente é dos mais modernos, no entanto, temos altíssimos índices de criminalidade de menores de idade, enquanto a Suécia, com leis que não chegam perto das boas intenções da nossa, tem números muito menores.
A regra se repete em várias outras legislações feitas para resolver problemas que só se agravam pela falta das outras ações indispensáveis para dar suporte aos objetivos da lei específica.
Não adianta pretender usar as Forças Armadas para combater a criminalidade no Rio de Janeiro se, concomitantemente, não forem implementadas ações pragmáticas, destinadas a mudar a realidade das comunidades ocupadas pelo crime organizado. Sem assistência social, serviço de prontosocorro, médico da família, assistência à mulher, ações de vacinação e prevenção de doenças, creche, escola, saneamento básico, água encanada, iluminação pública, energia, transporte, etc., a situação não vai mudar. Sem a presença efetiva do Estado na vida da comunidade a guerra está perdida antes de começar.
A mesma verdade vale para o trânsito. A primeira constatação irrefutável é a ausência do Estado, desde a construção e manutenção das vias até a educação para o trânsito, algo muito mais sofisticado e que não se confunde com os cursos obrigatórios para quem perde a habilitação, vistos pela sociedade, muito mais como uma punição para o motorista do que como uma ação educativa.
Na base dos acidentes de trânsito brasileiros está, antes de tudo, a realidade social: de um lado, o motorista despreparado para dirigir e, de outro, o cidadão que se acha acima da lei e que, por isso, pode fazer o que quiser impunemente.
Um não sabe as consequências de dirigir embriagado e o outro não liga para as consequências de dirigir embriagado. O resultado é que perde quem normalmente não tem nada com a história, apenas está no lugar errado, na hora errada e por isso é atingido por um carro desgovernado, dirigido por alguém alcoolizado, que não poderia estar dirigindo.
A soma dos fatores de risco forma um desenho altamente preocupante, que poderia ser definido como uma imensa sucuri comendo o próprio rabo. A falta de educação, a falta de responsabilidade, a impunidade, o desrespeito, a negligência, a imprudência, a imperícia, o dolo, a corrupção, a ausência do Estado, a falta de uma política de trânsito, as condições precárias das vias, da sinalização e da fiscalização são os ingredientes perfeitos para piorar um quadro que está entre os mais tristes do mundo.
Sem dúvida o telefone celular é uma arma importante para aumentar o número de acidentes de trânsito, mas ele está longe de ser a única e, ainda que cresça mais do que as outras, não está tirando, nem reduzindo, a letalidade dos outros eventos ou ações que continuam firmes na sua missão de matar e ferir pessoas.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 22/10/2018