Você sabe ou seria capaz de adivinhar as 100 palavras mais usadas nos livros infantis? E se você refletir por alguns instantes, seria capaz de desenvolver alguma hipótese sobre o tipo de palavras? Seriam as palavras mais ligadas ao dia-a-dia? Ao contexto? Aos objetos concretos? Às ações típicas da criança? À constelação familiar?
Ao iniciar um projeto para produzir uma coleção de livros para desenvolver fluência de leitura, identificamos um total superior a 260 mil palavras diferentes em 26 clássicos da literatura infantil. Desse total, as 100 palavras mais frequentes são palavras do tipo: a, que, como, onde, quem, por que, assim, etc. Ou seja: são palavras “sem sentido”.
Se você refletiu antes de formular sua hipótese sobre quais são as palavras mais usadas nos livros infantis, deve ter entendido aonde quero chegar: a maior parte do esforço para entender um texto reside em decifrar o significado das palavras que não têm sentido – aquelas que funcionam para explicar ou implicar as ideias umas com as outras – o que a gramática chama de anáforas e dêiticos.
Para compreender textos, é importante conhecer o sentido das palavras. Mas outras habilidades são igualmente importantes. Uma delas, que requer sempre muito maior esforço, consiste em estabelecer relações entre as palavras. Mesmo num texto do qual conhecemos todas as palavras, esse esforço é necessário. Por exemplo, para compreender a frase “Ontem ela disse que ele estaria aqui cedinho”, o leitor precisa fazer uma série de inferências a respeito de quando era ontem, quem era ela, quem é ele, onde é o “aqui” e assim por diante.
Leia mais de João Batista Oliveira
Reforma da Previdência e Primeira Infância
Métodos de alfabetização fazem diferença
Alfabetização: A guerra das evidências
Por que estou tratando deste assunto neste post? Por causa da perspectiva de um debate sobre alfabetização e ensino da língua. Ajudar as crianças a compreender textos requer muito mais do que do que alfabetizar, sem dúvida. Aliás, cabe lembrar que podemos compreender sem saber ler – prova disso são os pré-escolares e os adultos analfabetos: saber ler e saber compreender são habilidades independentes. Para compreender textos escritos, além de ser alfabetizado, é essencial dominar as ferramentas da língua e mobilizar, de forma consciente, o conhecimento inconsciente que temos da sintaxe. Isso ocorre antes, durante e depois do processo da alfabetização.
As ideias veiculadas até hoje procuram estigmatizar a “alfabetização” como algo menor, secundário e que não possui sua identidade, características e métodos próprios. Ao mesmo tempo não ajudam a população a entender que o domínio da língua é algo permanente, que começa no berço e termina na cova. Alfabetização é algo específico, com princípio, meio e fim. As palavras mais frequentes da língua são palavras sem sentido próprio. A alfabetização bem feita permite ao leitor identificar a palavra em qualquer texto ou contexto. O ensino e o domínio da língua permitem entender o seu sentido, no texto e com base no contexto. A ideia de que tudo tem que ter sentido e ser aprendido de forma contextualizada não passa de uma ideia – de resto, equivocada.
Fonte: “Veja”, 21/01/2019