Quando ninguém acreditava que Donald Trump pudesse vencer, o jornalista Sasha Issenberg foi visitar o quartel-general da campanha dele. Doze dias antes da vitória, coassinou um artigo presciente sobre a estratégia digital de Trump. No dia do debate final entre Trump e Hillary Clinton, a equipe do marqueteiro Brad Parscale enviara 175 mil mensagens diferentes a milhões de eleitores. Gastava us$ 70 milhões por mês, quase tudo anunciando no Facebook. Seus alvos prioritários eram 13 milhões de eleitores em 16 estados decisivos. Não apenas os propensos a votar em Trump, mas também prováveis eleitores de Hillary. Para afastá-los das urnas, Parscale usava um recurso do Facebook que torna um anúncio invisível a todos, menos ao destinatário. Aos negros, lembrava que Hillary já os chamara de “superpredadores”. Às mulheres, retratava Bill Clinton como estuprador. Enquetes diárias testavam a eficácia. Numa eleição vencida por menos de 80 mil votos em três estados, a campanha no Facebook foi decisiva.
Qual o papel da empresa britânica Cambridge Analytica (CA), investigada por violação de privacidade dos dois lados do Atlântico? A CA forneceu a Parscale 220 milhões de perfis, segmentados por 5 mil características. Mas era apenas uma das fontes dos dados usados. Mais de 200 milhões de perfis foram recolhidos pelo próprio Comitê Nacional Republicano. Sem os dados da ca, não faltariam informações para Parscale trabalhar. A principal contribuição da CA foi outra:
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A avaliação das chances de alguém votar em Trump, por meio de uma técnica chamada “psicografia”. Aperfeiçoada por pesquisadores da Universidade de Cambridge, usava curtidas do Facebook para deduzir preferências pessoais.
Segundo um estudo de 2013, dizia com 88% de precisão se alguém era gay, com 95% se era negro e com 85% se era democrata. A CA adaptou os testes para inferir inclinações políticas de sua base de dados.
Mas avaliar cada eleitor é apenas um primeiro passo. Pode até parecer revolucionário num país acostumado ao ultrapassado horário eleitoral gratuito. Em 2016, já era técnica corrente nos Estados Unidos. A primeira campanha a usá-la não foi a de Trump, mas a de Barack Obama, em 2008, relata Issenberg em The victory lab (O laboratório da vitória). Na época, os democratas tinham uma base com 180 milhões de eleitores, um método próprio para avaliar diariamente as inclinações de cada um e medidas para estimar se era melhor atingir os indecisos com e-mails, anúncios no rádio, na tv ou até numa linha de ônibus específica de Ohio. A vitória de Obama foi um choque para marqueteiros viciados em campanhas de massas. Mostrou o valor de duas inovações: 1) a microssegmentação para atingir cada indivíduo, não todo o público; 2) testes de campo para medir a eficácia das mensagens, tão relevante quanto encontrar os alvos mais propensos a ouvi-la.
O livro de Issenberg ajuda a pôr em contexto o imbróglio Facebook-ca. Apresenta as inovações eleitorais desde 1919, quando foram concebidas as primeiras pesquisas. Atravessa as campanhas na tv dos anos 1950. Passa pela vitória de Kennedy, pioneira ao segmentar o eleitorado em 480 grupos. Descreve como a microssegmentação — de que a CA tanto se gabava — já era adotada em 2002, na reeleição de George W. Bush. De lá para cá, democratas e republicanos vêm protagonizando uma corrida pelas melhores armas tecnológicas. Hoje a vantagem é republicana. O livro acaba antes de Parscale, que inovou ao usar o Facebook para baratear os testes de anúncio. Mas cita a CA no posfácio, como representante do então pré-candidato republicano Ted Cruz em 2015 (nem se falava em Trump). Os britânicos são descritos como uma “equipe comum de ciências de dados, grata por contar com pós-doutores em astrofísica por Cambridge, mesmo que nenhum jamais tivesse trabalhado numa campanha política”. A empáfia lhes custou caro. Mas as mensagens individualizadas, a segmentação psicológica e o uso de dados continuarão. Nada disso tem a ver com as ilegalidades atribuídas à CA.
Fonte: “Época”, 31/03/2018