Há matérias jornalísticas que, embora não importantes em si mesmas, ilustram de maneira muito eloquente o drama vivido pelo jornalismo profissional hoje em dia. A imprensa está sob ataque constante da militância bolsonarista (assim como já esteve, em um momento anterior, sob o ataque petista). Há campanhas ativas para cancelar assinaturas de jornais e revistas, supostamente por serem muito enviesados. Ao mesmo tempo, como alternativas à mídia profissional, se propõem blogs e canais de Youtube que fazem defesa incondicional do governo. Como o próprio presidente incentiva esse tipo de atitude, e como o sentimento anti-mídia está em alta, o momento é grave.
Eu acredito, ao contrário do discurso padrão, que a revolta contra a imprensa não se deve à sua parcialidade, e sim ao fato de ela ser menos parcial do que os leitores gostariam. Pequenos vieses que favorecem o lado do leitor passam despercebidos, são encarados como mera descrição objetiva do mundo, enquanto vieses que contrariem suas posições geram extrema indignação. Isso explica porque um mesmo jornal ou revista pode ser visto como de “direita” ou de “esquerda” por diferentes leitores (que sempre o percebem como contrário ao seu ponto de vista); quando tudo que ele faz, provavelmente, é provocar para gerar interesse.
Vamos ao exemplo concreto. Em matéria do dia 22/07, diz a manchete da UOL: “Em shopping de alto padrão, Rosângela Moro defende fim de assistencialismo”.
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Essa manchete nos leva a crer, numa primeira leitura, que Rosângela Moro defende o fim, no presente, de políticas assistenciais do governo. Ou seja: completa falta de sensibilidade para com os mais pobres, e isso vindo de uma mulher rica, que fala num shopping de alto padrão. Lendo a matéria, contudo, vemos que não é bem assim: ela considera políticas assistencialistas como importantes. Pelas falas citadas, podemos concluir que Rosângela Moro seria contra acabar com as políticas sociais do Estado brasileiro.
Então a jornalista mentiu? Não. Afinal, em pelo menos dois outros sentidos, Rosângela Moro defende sim o fim do assistencialismo: 1) ela acredita que a política assistencial bem-sucedida deveria levar ao fim da pobreza, e portanto idealmente deixaria de exisitir depois de cumprir seu objetivo; 2) ela defende que, ao invés do assistencialismo praticado por Estado e ONGs, mais objetivos sociais fiquem a cargo de negócios sociais, empresas que buscam o lucro por meio de atividades com impacto social positivo.
Também é uma verdade inegável que Rosângela Moro estava num shopping de alto padrão. Essa informação é verdadeira. No entanto, ela nos leva a formar, não uma interpretação diferente das palavras, e sim uma imagem mental que confirma um certo estereótipo: o da socialite ociosa e ignorante sobre a realidade do país. Não sei como a palestrante e as demais presentes na palestra são na vida real, mas, pelas informações dadas na matéria, outras representações seriam igualmente possíveis: empresárias, filantropistas engajadas, etc.
A jornalista apenas comunicou verdades em sua manchete. Mas ela escolheu essas verdades de maneira a dar a entender uma certa leitura dos acontecimentos que não é necessariamente verdadeira. E esse contraste entre a imagem que o leitor formou ao ler a manchete e o que ele descobre ao ler o conteúdo da matéria gera, em muitos, indignação com a imprensa.
Trata-se de uma matéria menor entre as dezenas publicadas por dia. Nela, sem afirmar uma inverdade, a jornalista formulou a manchete de maneira a sugerir interpretações equivocadas sobre o teor do discurso de Rosângela Moro e a encaixá-la em um certo estereótipo social. Isso é feito para gerar interesse dos leitores; levá-los a clicar e a ler a matéria. Se a manchete fosse um genérico e objetivo “Rosângela Moro dá palestra sobre empreendedorismo social em shopping center”, poucas pessoas se interessariam.
A necessidade de atrair a atenção do leitor leva o veículo de mídia a formular manchetes que vão aos poucos minando a confiança dos leitores.
Se dependesse de mim, os leitores apenas aprenderiam a tomar as manchetes e reportagens sempre com um grão de sal, sabendo que esses pequenos vieses e provocações são parte do trabalho ingrato de ter que unir investigação, apuração e transmissão de informação a sucesso comercial. Os leitores, contudo, não vão mudar de uma hora para outra. Resta saber, então, o que os órgão de mídia podem fazer diferente para reconstruir as pontes que estão sendo quebradas.
Fonte: “Exame/ Blog Joel Pinheiro da Fonseca”, 25/07/2019