Gostamos de acreditar que os primeiros Estados surgiram de um contrato voluntário entre os cidadãos. Cansados de conflitos, nossos ancestrais baixaram as armas em nome de um mediador poderoso que ficou a cargo do monopólio da violência.
Thomas Hobbes criou essa imagem como uma metáfora, não um relato histórico. Mesmo assim há muitos casos de povos que voluntariamente se submeteram a um Leviatã. Em 1881, por exemplo, dois nobres do atual Camarões escreveram ao primeiro-ministro britânico William Gladstone pedindo para serem súditos.
“Queremos que nosso país seja governado pelo Império Britânico”, disseram. “Estamos cansados de chefiar este país: toda disputa leva a uma guerra, geralmente com um grande número de mortes.”
Mas um livro lançado no ano passado –”Against the Grain”, de James Scott, professor de Ciência Política de Yale– contesta esse retrato pacífico. Scott mostra que os primeiros estados da Mesopotâmia surgiram como as milícias do Rio de Janeiro hoje. Propuseram a pessoas indefesas um misto de oferta e ameaça, um serviço de proteção que não se podia recusar.
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Há 5 mil anos, pertencer a uma cidade-estado não resultava em vantagens evidentes como hoje se acredita. A concentração urbana tornava a população vulnerável a epidemias, infecções, incêndios e ao esgotamento do solo. Dependendo demais do plantio de poucos grãos, os Estados eram muito sensíveis a quedas na colheita. Em tempos de escassez ou guerra (menor arrecadação e maior gasto), a elite estatal aumentava o confisco sobre súditos e escravos.
Muitos preferiam dar o fora. Scott conta que, nos primeiros estados chineses ou mesopotâmios, muralhas serviam tanto para impedir o ataque de bárbaros quanto para evitar a fuga de pagadores de impostos. “A vida fora do Estado –a vida como um ‘bárbaro’– pode com frequência ter sido materialmente mais fácil, livre e saudável que a vida de pessoas comuns na Civilização”, diz ele.
Ser um bárbaro permitia ainda atacar e saquear as cidades-estado. Na China, na Índia, na Europa ou no Oriente Médio, invasões bárbaras eram um problema constante. O que em si era um problema para os invasores. Se os saques eram frequentes demais, tiravam o incentivo dos povoados para produzir riquezas –e os invasores ficavam sem ter o que roubar.
Foi assim que os bárbaros (como as milícias ou gangues de tráfico fazem toda semana) começaram a cobrar para não atacar. No século 4 a.C., Roma pagou mil libras de ouro aos celtas para evitar invasões. Em 2018, empresas cariocas pagam R$ 10 mil por mês a milícias para evitar roubos de carga.
Depois, os invasores exigiram pagamentos em troca de proteção (o que também é frequente no Rio de Janeiro). O “bandido errante” se tornou um “bandido estacionário”, dando origem a mais um Estado. Que precisaria construir suas próprias muralhas para evitar a fuga de insatisfeitos.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 23/05/2018