A flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal é um ato de escárnio de um Congresso Nacional em dissintonia com a Nação. A maioria dos brasileiros expressou claramente o desejo de renovação política e de mudança de comportamento dos nossos governantes nas eleições de outubro. O recado das urnas manifestou um veemente repúdio à corrupção, à ineficiência do Estado e ao sequestro da política pelos interesses corporativistas. Mas eis que o Congresso Nacional, no apagar das luzes da atual legislatura, aprova uma nova medida que premia a irresponsabilidade dos governantes, prejudica a população e pune os políticos sérios que tiveram de adotar medidas duras e impopulares para honrar o teto de gastos públicos.
A Lei de Responsabilidade Fiscal é vital para garantir os fundamentos da gestão responsável dos recursos públicos. Prefeitos e governadores podem ser punidos com suspensão de recursos federais, de empréstimos e até mesmo com a perda de mandato se gastarem mais de 60% da receita corrente líquida com pessoal. E por que esse limite é tão importante? Porque ele evita dois males. O primeiro é que a inexistência de um teto de gastos oferece um incentivo perverso a governantes irresponsáveis: em vez de investirem na melhoria da qualidade do serviço público para o cidadão, preferem distribuir empregos públicos a seus cabos eleitorais e aliados políticos. O segundo é evitar que políticos perdulários tornem inviável o governo dos seus sucessores, deixando os cofres públicos vazios e com dívidas impagáveis.
Leia mais
Alexandre Schwartsman: Congresso abriu a porteira para o gasto desenfreado ao mudar a LRF
Raul Velloso: O grande abacaxi de Bolsonaro
Winston Churchill, o célebre primeiro-ministro britânico, dizia que a função do Parlamento não é apenas fazer boas leis, mas, principalmente, impedir que más leis sejam aprovadas. A leviandade dos parlamentares brasileiros ao aprovarem a “flexibilização” da Lei de Responsabilidade Fiscal exige uma resposta dura das instituições. O presidente Michel Temer tem o poder – e o dever – de vetar a medida.
Caberá ao próximo Congresso a responsabilidade de ir muito além da preservação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Há duas medidas necessárias que ajudarão a disciplinar as finanças municipais antes das eleições dos novos prefeitos, em 2020.
A primeira consiste em limitar a utilização do Fundo de Participação dos Municípios. É imprescindível vetar o uso dos recursos desse fundo para o pagamento de despesas correntes, como é o caso do gasto com pessoal. Cidades deveriam ser obrigadas a arcar com as despesas da máquina pública com recursos provenientes da arrecadação dos tributos municipais. Se não forem capazes de financiar os gastos do governo com suas próprias receitas, serão forçados a aumentar os impostos ou ser mais eficiente na fiscalização e cobrança de tributos devidos. Caso não consigam tornar viável o custeio de suas despesas, terão, em última instância, de se fundir com outros municípios. Uma cidade, assim como uma pessoa, não se pode autoproclamar independente se não for capaz de viver com recursos próprios. Assim, o dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios só poderia ser utilizado para investir na melhoria da qualidade do serviço público – o que o cidadão aguarda avidamente.
A segunda medida consiste em proibir a remuneração de vereadores de cidades até 50 mil eleitores. Durante muitos anos, vereadores das pequenas cidades não recebiam remuneração por sua atividade. Trata-se de uma boa prática que precisa ser ressuscitada. Estudo recente publicado pela Frente Nacional dos Municípios revela o absurdo de transplantar o mesmo arcabouço administrativo das grandes cidades para os pequenos municípios. Nas grandes metrópoles, com população acima de 500 mil habitantes, a média de servidores públicos é de 17/mil habitantes. Já nas cidades com população até 20 mil habitantes, a média é de 50/mil. É preciso acabar com salários, cargos e cabide de empregos que aumentam o custo da máquina pública e não trazem melhoria da qualidade dos serviços públicos para o cidadão.
Na gestão pública, temos de mudar a cultura da sinecura para a da meritocracia. Isso significa separar o joio do trigo no funcionalismo público. O primeiro precisa ser extirpado, o segundo tem de ser valorizado e reconhecido. Há um mito de que não se pode demitir funcionário público.
Não é verdade. O artigo 41 da Constituição da República determina as condições em que se pode demiti-los. O parágrafo 3.º é claro. O servidor pode ser posto em disponibilidade e receber, como “remuneração proporcional ao tempo de serviço”, 1/35 (homens) e 1/30 (mulheres) para cada ano de serviço prestado. Ou seja, a extinção de cargos e o corte substancial de pessoas podem proporcionar uma economia significativa, capaz de financiar os vencimentos dos funcionários afastados.
+ de Luiz Felipe d’Avila: Hora de trabalharmos pelo Brasil
Já os bons servidores públicos precisam ser valorizados, capacitados e ter um plano de carreira que os motive a trabalhar com senso de propósito público, metas claras de desempenho e meritocracia. Ana Carla Abrão, colunista do Estadão, vem insistentemente enfatizando a necessidade de promovermos uma revolução nos recursos humanos do setor público. E ela está absolutamente certa. A existência de uma burocracia pautada pelo espírito público e focada em resultados é vital para melhorar a qualidade do serviço público, a eficiência do Estado e ainda diminuir a corrupção.
Há muita gente talentosa na gestão pública que também aguarda os atos de coragem dos novos governantes para destravar as amarras do Estado, reduzir o excesso de burocracia e o custo incompatível da máquina pública com a qualidade do serviço que presta à população. O resgate da credibilidade da política começa pelo respeito dos governantes à vontade expressa pelos eleitores nas urnas.
Fonte: “Estadão”, 13/12/2018