“A corrupção é, de longe, uma das piores chagas do organismo nacional. E a impunidade é a vitória das trevas. Ela mata o presente e sequestra o futuro. Esperemos, todos, que o Supremo Tribunal Federal, sobretudo seu presidente, ministro Dias Toffoli, não decida na contramão da cidadania. A prisão após o recurso em segundo grau pode mudar a cara do Brasil.” Assim, amigo leitor, terminei meu artigo publicado neste espaço opinativo no dia 4 de novembro.
Três dias depois, o STF e seu presidente votaram de costas para a sociedade. Em nome de suposta defesa da norma constitucional, e em contradição com decisões anteriores da Corte Suprema, consagraram a impunidade. O presidente Dias Toffoli, devo reconhecer, ao encerrar o seu voto, e quase que pedindo desculpas aos brasileiros, disse o óbvio: o Congresso Nacional pode retomar a prisão após condenação em segunda instância.
Pois bem, duas recentes matérias do jornal O Estado de S. Paulo trouxeram uma lufada de esperança para a opinião pública. A primeira: placar do Estado aponta que ao menos 341 parlamentares, na Câmara e no Senado, apoiam alguma mudança na legislação que permita a execução antecipada da pena.
Em discussão no Congresso, a retomada da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância tem apoio da maioria dos parlamentares. Placar do Estado mostra 51 senadores e 290 deputados favoráveis à tese – 341 de um total de 594 representantes. No Senado já há aval declarado para a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição, enquanto na Câmara faltariam apenas 18 votos para alcançar o mínimo exigido, sempre em dois turnos.
Em debate no Legislativo desde fevereiro, quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, apresentou seu pacote anticrime, a proposta de estabelecer em lei a prisão após condenação em segunda instância ganhou relevância depois que o STF vetou essa possibilidade antes do trânsito em julgado (quando esgotados todos os recursos). A Corte Suprema abriu caminho para a libertação, entre outros, de presos por corrupção, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mais avançada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara deu o pontapé inicial e aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC) nesse sentido. De autoria do deputado Alex Manente (Cidadania-SP), a proposta altera os artigos 102 e 105 para reduzir a possibilidade de recursos. O texto foi o segundo apresentado por Manente. O primeiro, que mexia no artigo 5.º da Constituição – o que trata sobre a “presunção de inocência”, considerada por parte da classe jurídica como cláusula pétrea -, foi descartado pelo risco de judicialização. O placar da comissão foi folgado: 50 a favor e 12 contra.
No Senado, a CCJ cogita de votar outra opção: uma mudança no Código de Processo Penal para disciplinar a execução da pena após a condenação em segunda instância. Por se tratar de um projeto de lei, a matéria pode ser aprovada no plenário da Casa com maioria simples (41 votos), enquanto uma PEC exigiria o aval de 49 senadores.
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O Congresso Nacional, ao contrário do STF, é muito mais sensível aos reclamos da sociedade. Os parlamentares são submetidos ao crivo do processo eleitoral. Já os ilustres ministros da Corte Suprema estão instalados na confortável e por vezes arrogante tranquilidade da vitaliciedade. Não se dão ao incômodo de explicar seu ativismo e suas incoerências. Afinal, o STF, tão cioso do respeito à Constituição, mudou mais de uma vez o seu entendimento a respeito do cumprimento das penas.
Outra excelente matéria do Estado mostra de modo claro como o STF, de fato e independentemente dos discursos de seus ministros, se converteu no grande instrumento da impunidade no Brasil. Quase 950 ações penais de tribunais superiores prescreveram num intervalo de dois anos. Segundo números de 2017 analisados pelo gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, 830 processos que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram arquivados por prescrição em dois anos. No Supremo, foram 116 casos.
Os números lançam um poderoso facho de luz sobre a sensação de impunidade com a lentidão em condenar réus, um problema que pode ser muito agravado depois que o STF decidiu que a execução da pena, como prisão, deve ser levada a cabo depois do esgotamento de todos os recursos.
Só para lembrar: entre os políticos que tiveram casos prescritos estão o ex-presidente José Sarney (MDB), os senadores Fernando Collor (PROS-AL), José Serra (PSDB-SP) e Jader Barbalho (MDB-PA) e o ex-ministro Eliseu Padilha (MDB-RS). Você fica feliz com isso, caro leitor?
“Num intervalo de dois anos, quase mil casos prescreveram, depois de haverem movimentado por muitos anos o sistema de Justiça. Não é preciso ser muito sagaz para constatar que os grandes beneficiários da prescrição são aqueles que têm dinheiro para manipular o sistema com recursos procrastinatórios sem fim”, disse o ministro Luís Roberto Barroso ao votar a favor da prisão em segunda instância. Para o ministro, sem a execução antecipada da pena o sistema “induz” à prescrição.
Como disse um bom amigo, não há democracia sem justiça. E não há justiça se reina a impunidade. O STF pode consumar o maior golpe que a democracia brasileira poderia receber. A derrubada da condenação em segunda instância consagra a Justiça que privilegia os ricos e pune os pobres. Recursos infinitos custam dinheiro. Na prática, compram a impunidade. A paciência da sociedade está no limite. A legítima revolta contra a corrupção, a delinquência e os privilégios não terminará. Pressione seu senador. Pressione seu deputado. Isso é exercer a democracia e fazer valer a cidadania.
O Congresso pode virar esse jogo.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 2/12/2019