Finalmente o Ministério da Educação (MEC) revelou a sua proposta para a Base Curricular do Ensino Médio. A intenção era sair da camisa de força de um currículo tradicional, pesado e único e substituí-lo por um programa enxuto, com um núcleo central de formação básica, sobretudo de linguagem e raciocínio matemático, e um leque de alternativas claras de aprofundamento, sejam mais acadêmicas, com opções nas áreas das ciências naturais ou sociais, ou vocacionais, com um leque mais amplo de escolhas. Os pressupostos eram não só que o currículo tradicional era inexequível, mas também que os estudantes chegam ao ensino médio com interesses e formação muito distintos, requerendo opções apropriadas a diferentes perfis.
A proposta provocou a resistência de todos os que temiam que suas matérias de preferência ficassem de fora ou perdessem importância, e eles conseguiram que a parte comum passasse a ocupar a maior parte do tempo escolar, 60% das 3 mil horas que todo o ensino médio deveria durar ao longo de três anos a partir de 2017, o que está ainda longe de ocorrer.
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Todas as cem páginas do documento do ministério foram dedicadas a elaborar o que seria essa parte comum inchada e nada foi feito no sentido de especificar quais seriam os conteúdos dos “itinerários formativos”, deixados a critério das redes escolares. O ministério também decidiu não trocar o atual Enem, que força todos os alunos a se preparar para um exame único, por conjunto limitado de opções, sem o que a diferenciação do sistema não tem como se dar.
O documento é um texto prolixo, carregado de frases aparentemente eruditas, mas frequentemente retóricas e muitas vezes equivocadas. Ele procura fugir da organização do conhecimento em disciplinas e linhas de pesquisa e estudo, que é como o conhecimento se dá e é transmitido no mundo real, e substituí-la por uma linguagem formal e abstrata de “competências” e “habilidades” que pode ser útil em processos muito específicos de capacitação para atividades práticas, mas é muito questionável quando se pretende aplicá-la a processos formativos mais amplos. A ideia é definir as bases a partir das quais os currículos possam ser estabelecidos pelas redes escolares, mas isso foi feito por meio de listas extremamente detalhadas de boas intenções que, parece-me, ou não servem para nada, ou se podem transformar em pesadelos se o ministério pretender um dia verificar se elas estão sendo de fato implementadas.
Para dar um exemplo, na área de “linguagem e suas tecnologias”, que no entendimento peculiar do MEC é uma “área de conhecimento” que inclui português, inglês, dança e educação física (?!), uma das sete “competências específicas” a serem desenvolvidas é “compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas (artísticas, corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica da realidade e para continuar aprendendo”. Essas sete competências específicas são detalhadas em 25 “habilidades”, a primeira das quais é “compreender e analisar processos de produção e circulação de discursos, nas diferentes linguagens, para fazer escolhas fundamentadas em função de interesses pessoais e coletivos”.
Na parte específica da língua portuguesa, são especificadas mais 53 “habilidades” em cinco diferentes “campos”, uma das quais é “analisar relações de intertextualidade e interdiscursividade que permitam a explicitação de relações dialógicas, a identificação de posicionamentos ou de perspectivas, a compreensão de paródias e estilizações, entre outras possibilidades”.
O mesmo ocorre na área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, que na concepção do MEC inclui filosofia, geografia, história e sociologia (mas não economia, direito, ciência política, antropologia, linguística ou administração), na qual a primeira das competências é “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir de procedimentos epistemológicos e científicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente com relação a esses processos e às possíveis relações entre eles”.
Nas “ciências naturais e suas tecnologias”, a segunda das habilidades propostas é “construir e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar decisões éticas e responsáveis”, como se isso fosse possível sem uma forte formação em física pós-newtoniana, biologia e filosofia normativa.
Na matemática, que teve a sorte de ser preservada como uma disciplina em separado, a listagem de habilidades e competências faz mais sentido, o problema principal é definir quanta e qual matemática os estudantes que se estejam preparando para cursos superiores nas engenharias, ciências sociais, na literatura ou em cursos profissionais, como auxiliar de enfermagem ou processamento de dados, precisariam e teriam condições de aprender.
Como, na prática, os currículos ficaram a cargo das redes escolares, o mais provável é que a base curricular seja simplesmente ignorada. Com ela o ensino médio ficou mais amorfo, o que poderia ser aproveitado pelas escolas e redes para criar suas próprias alternativas, não fosse o fantasma do Enem no final do túnel, fechando o caminho para todos, exceto os privilegiados das escolas privadas e públicas de elite que conseguem preparar seus estudantes para o paraíso do ensino superior de mais qualidade. Para os demais, nada muda.
Fonte: “Estadão”, 09/04/2018