Passou o carnaval e o País aguarda os próximos passos do governo. Em meio a um início atrapalhado, a proposta de reforma da Previdência talvez seja dos poucos destaques positivos.
Os próximos meses serão de incertezas quanto ao conteúdo final da reforma. Seria muito importante aprová-la na Câmara ainda no primeiro semestre, enquanto o presidente conta com popularidade elevada. O tempo conspira contra. Uma tramitação lenta eleva o risco de maior encolhimento da matéria. Servem de alerta a modesta aprovação do governo, de 40% segundo pesquisa da XP, e o tímido crescimento do partido do presidente, o PSL, contrariando as expectativas.
Esta que é a principal iniciativa do governo, e que vai mexer com a vida de todos, não foi, porém, tema da campanha eleitoral, dificultando sua aceitação. De quebra, Bolsonaro é inexperiente e se mostra perigosamente sensível a redes sociais. Enquanto isso, assistimos à pressão nada republicana de setores organizados do funcionalismo contra a reforma e à manipulação desonesta do seu conteúdo por grupos da oposição. Em alguma medida, a repetição das dificuldades enfrentadas por Michel Temer.
O risco de uma reforma tímida é, portanto, elevado. Nesse contexto, ganha particular relevância a proposta de retirar do texto constitucional a maioria dos dispositivos que regulamentam o acesso aos benefícios previdenciários. A intenção é estabelecer normas gerais na Constituição e definir detalhes por lei complementar, aproximando o Brasil da experiência mundial.
Esse seria um grande avanço institucional que facilitaria os ajustes futuros na Previdência Social – seriam necessários 257 votos na Câmara, e não os 308 das votações constitucionais –, ajustes estes inevitáveis diante do aumento da expectativa de vida e da natural necessidade de correções conforme se identificarem distorções e falhas nas regras vigentes. É essencial também prover maior flexibilidade para que governantes e legisladores ajustem as regras do jogo às necessidades mutantes da sociedade e do setor produtivo. Além do envelhecimento da sociedade, há importantes mudanças em curso nas relações trabalhistas e nos costumes.
É importante desobstruir o caminho para reformas. A experiência de muitos países, incluindo os da América Latina, mostra que reformas da Previdência são políticas públicas em constante construção. Não deveria ser diferente no Brasil.
Além disso, há um consenso entre especialistas sobre a necessidade de enxugar a Carta de 1988. Ela refletiu um momento particular de redemocratização do País, quando havia o receio – que se mostrou infundado – de fraqueza do Legislativo e de excessos do Judiciário. Passados 30 anos da sua promulgação, o País tem maior amadurecimento democrático, com melhor funcionamento das instituições de controle e maior participação popular.
Acreditava-se que bastava a lei para transformar a realidade. A Constituição estabeleceu muitos direitos e poucos deveres dos cidadãos, e produziu um regime previdenciário insustentável e desigual. Com tantas demandas sociais, corporações aproveitaram para garantir privilégios e proteções. A Constituição tão detalhada e protetora tornou-se o inverso do que se pretendia, protegendo a elite à custa dos mais vulneráveis.
As regras previdenciárias atuais são concentradoras de renda e a reforma proposta representa um passo importante, ainda que não suficiente, para eliminar a desigualdade do sistema.
A desconstitucionalização de regras da Previdência deveria ser do interesse dos vários grupos políticos. Afinal, há chances concretas de necessitarmos de uma outra reforma em um próximo mandato presidencial. A julgar pelo pobre histórico brasileiro na aprovação de reformas amplas e ambiciosas, o risco de uma reforma modesta agora não pode ser nem de longe ignorado.
A história ensina, e com ironia. Jair Bolsonaro foi contra reformar a Previdência no passado. Agora, essa missão caiu no seu colo.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 07/03/2019