A política brasileira está sendo sacudida por uma mudança cultural que, lá fora e aqui, está transformando e subvertendo antigas estruturas de poder. Partidos e políticos tradicionais vão sendo substituídos por outsiders. Modelos que prevaleceram por décadas entraram em colapso. O fenômeno revela o esgotamento das ideologias dominantes e uma clara mudança do pêndulo da História. Uma visão de mundo menos algemada pelo politicamente correto e mais conservadora perde a vergonha de se apresentar como alternativa. As redes sociais tiveram papel decisivo no redesenho da política e da economia, no resgate da agenda moral. Elas estão no centro da virada.
Segundo alguns analistas, a eleição de Jair Bolsonaro só se explica pela presença de um forte sentimento antipetista. A interpretação é verdadeira. Mas só em parte.
Jair Bolsonaro, com suas virtudes, seus defeitos e seu estilo “presidente mesa de bar”, soube captar o pulsar profundo da sociedade. Sua mensagem – na política, na economia, na segurança pública, na defesa dos valores – foi ao encontro de um sentimento latente na alma nacional. Isso explica boa parte do seu desempenho. Passou como um tanque e arrasou o antigo mapa do poder: grandes partidos encolheram, velhos caciques foram pulverizados, antigas fontes desapareceram e a esquerda está literalmente no córner. O velho modelo perdeu vigor, rumo e identidade.
As redes sociais tiveram papel decisivo. Bolsonaro falou diretamente com o eleitorado. Rompeu, como nunca antes se tinha visto, a intermediação das empresas de comunicação. Agora, sentado na cadeira presidencial, continua na mesma toada. Bolsonaro está nas manchetes, nas páginas de política e nas discussões midiáticas.
Isso é ruim ou bom para seu governo? É incompetência ou jogada ensaiada? Será que tudo isso, aparentemente desconexo e incompreensível, até mesmo desagradável, faz parte de um jogo estudado, manifestação de uma estratégia pensada e implementada?
É cedo para chegar a uma conclusão. Creio que muitas vezes o presidente estique excessivamente a corda da sua comunicação disruptiva. Mantém sua militância unida e motivada, mas corre o risco de perder o importante capital representado por aqueles que querem mais governo e menos confronto, mais diálogo e menos conflito. O Brasil, não esqueçamos, é um país de consenso. Não foi só a roubalheira que fez água no projeto lulopetista de perpetuação no poder. Foi o cansaço provocado pela estratégia do “nós contra eles”.
A agressividade como forma de comunicação pode dar certo no curto prazo. Mas desgasta, e muito, numa perspectiva de médio prazo. Provoca antipatia e acaba transferindo o controle da narrativa para as mãos dos que, espertamente, se apresentam como vítimas da comunicação metralhadora giratória. Em política, o mocinho pode virar vilão muito rapidamente. No mundo da pós-verdade o que importa não é a objetividade dos fatos, mas a força emocional das percepções.
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O presidente da República corre o risco de perder a batalha das percepções. A equipe montada por Jair Bolsonaro é muito superior às da era petista. Tem gente séria trabalhando: Paulo Guedes, Sergio Moro, Tarcísio Gomes de Freitas, general Heleno, o porta-voz da Presidência, general Rêgo Barros, e Tereza Cristina, entre outros. Não dá para comparar com ministérios de recente e triste memória. Claro, há a dúvida se os filhos mostrarão seu calcanhar de aquiles e o risco de indevidas tentativas de interferência na Polícia Federal, no Coaf (agora UIF), etc. Bolsonaro tem falado demais. Produz espuma inconveniente para sua própria imagem. Mas até o momento, é justo reconhecer, o presidente não cruzou a fronteira, não feriu a lei, a Constituição e o valores republicanos.
Por outro lado, o Congresso Nacional tem trabalhado surpreendentemente bem. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem atuado com competência e habilidade. As reformas avançam e os parlamentares parecem mais cônscios de sua responsabilidade histórica.
É preciso analisar o atual governo com serenidade. Estou, a cada dia que passa, evitando pendurar etiquetas simplistas numa realidade que parece complexa. Tenho procurado pensar e refletir. Com esforço de compreensão da realidade, com mente aberta e sem preconceitos. Creio que precisamos fugir do jornalismo de fofoca e de polêmica superficial e mergulhar na análise dos fatos. É o modo mais eficaz de cobrir um governo inusitado.
Ao mesmo tempo, precisamos sentir o pulso da opinião pública. Estamos, vez por outra, de costas para a sociedade real. Não se trata de ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhecer e, mais do que isso, confrontar permanentemente o sentir das suas audiências.
Bolsonaro, por óbvio, precisa conversar com a mídia. Tenho dito e repetido. As críticas aos governantes, mesmo injustas, fazem parte do jogo. Não é possível recriar uma versão indesejável do “nós contra eles”. Não é bom para o País.
Governo e imprensa não podem ter uma relação promíscua. É salutar certa tensão entre as instituições. São peças essenciais da democracia. Espero que Bolsonaro desça do palanque e assuma o papel de presidente de todos os brasileiros. Espero também que nós, jornalistas, deponhamos as armas da militância e façamos jornalismo.
A observação não ingênua do cotidiano mostra que a política é show, encenação, espetáculo marqueteiro. Fazer jornalismo de qualidade é não ficar refém dos atores do teatro do poder. É cobrir os fatos. Com profundidade, clareza e capacidade de análise.
A imprensa de qualidade, séria e independente, é essencial para o futuro da democracia. E tudo isso, tudo mesmo, depende da nossa coragem e humildade para rever atitudes e entender novos contextos. E para isso é preciso ponderar e refletir, que são a proposta deste artigo.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 9/9/2019