A primeira fissura no governo Bolsonaro está formada. Saná-la será o primeiro desafio político do presidente, assim que estiver recuperado. Não opõe, como era esperado, os militares a Paulo Guedes, nem Guedes ao chanceler Ernesto Araújo, nem a agenda policial à econômica, nem a cultural à política ou a qualquer outra.
Trata-se de um conflito latente bem mais óbvio: opõe o presidente ao vice, o próprio Bolsonaro ao general Hamilton Mourão. Desde que o novo governo assumiu o poder, Mourão já manifestou divergências de Bolsonaro em temas que vão do aborto à embaixada em Jerusalém, de Jean Wyllys ao tratamento dispensado a jornalistas.
Não perde uma oportunidade de demarcar seu território político, nem de tentar transmitir uma imagem adulta diante do ar meio adolescente que contamina as mensagens de Bolsonaro nas redes sociais. Já despertou ciúmes nos filhos do presidente e críticas até do ex-estrategista-chefe de Donald Trump, Steve Bannon, que atacou Mourão sem nem mesmo saber pronunciar seu nome.
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Diante de todas as confusões que cercaram o primeiro mês do governo Bolsonaro, o brasileiro pode até se sentir aliviado com a presença e a influência de alguém com a serenidade e o bom senso de Mourão no governo. A distância de Bolsonaro – primeiro em Davos, depois no hospital – permitiu que ele flexionasse seus músculos políticos com maior amplitude e desenvoltura.
Mas a tensão entre Mourão e Bolsonaro não faz bem ao país. Pelo motivo óbvio: Mourão não foi eleito presidente, e a Constituição brasileira reserva ao vice um papel secundário, ou quase “decorativo”, para lembrar as palavras de Michel Temer em carta a Dilma Rousseff antes de apoiar abertamente seu impeachment.
Se Mourão transparece maior maturidade política que Bolsonaro, paciência. O presidente é o capitão, não o general. As declarações e movimentos de Mourão, a esta altura, só têm servido para alimentar as especulações a respeito de suas reais ambições.
A ausência do titular em Brasília produz uma sensação de vácuo aparente de poder, preechido por aquele que, além de sucessor natural, representa o mais relevante dos grupos que formam o governo Bolsonaro, os militares.
Mas há outras alas no governo, e o vácuo é apenas aparente. A extensão da permanência de Bolsonaro sob cuidados médicos, em virtude de uma infecção contraída depois da cirurgia, continuará a oferecer a Mourão o palco para ele declinar suas opiniões e escandir seus vaticínios.
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Se tiver espaço para erguer um centro de poder paralelo no Planalto, o governo passará a ser marcado por um clima de tramoia e conspiração. Em algum momento, Bolsonaro terá de impôr sua autoridade sobre o vice. Dependendo da forma como isso ocorrer, a tensão resultante poderá trazer complicações políticas.
Mesmo que Bolsonaro evite um conflito explícito, o país viverá no mínimo sob a tensão latente do atual momento. A cada tropeço de Bolsonaro, voltarão as especulações sobre aquele que, respondendo as críticas de Bannon, afirmou ser “um cara legal”.
Mourão já configura o maior foco de fogo amigo para Bolsonaro. Não há como saber até onde quer ou pode chegar com tal estratégia. A esta altura, só é possível afirmar que Bolsonaro precisará lidar com o assunto para que ele passe rápido como as complicações de seu pós-operatório – e não transforme num transtorno preocupante, capaz de mobilizar a opinião pública e de tomar conta da política nacional.
Fonte: “G1”, 08/02/2019