A campanha eleitoral de Jair Bolsonaro deixou a vida e passou a fazer parte da história a partir do momento em que ele se elegeu. Como obra terminada já é passível de merecer juízos. Tentarei argumentar a respeito formulando uma avaliação prévia, não sem antes insistir com você leitor que tal avaliação diz respeito somente ao que efetivamente já é passado; muito do que vai ser tratado aqui está entremeado com o presente e o futuro, de modo que o julgamento é bastante limitado em vários aspectos.
Mas, a meu ver, a campanha merece o epíteto de divisora de épocas.
A razão central desta avaliação tem a ver com aquilo que diferencia política de história. Quem fez campanha olhando para o passado, pensando na história, baseou toda sua estratégia em dados que eram mais que consolidados pela avaliação de centenas de casos pregressos.
Por tais avaliações, o fator decisivo para a conquista da maioria do eleitorado brasileiro era a conquista do maior tempo no horário eleitoral gratuito. A correlação positiva entre as duas variáveis era justificada empiricamente pelos analistas de pesquisa e homens de marketing eleitoral, sempre mostrando como a vitória eleitoral coincidia com o tempo de propaganda gratuita.
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Não se tratava apenas da esfera de comunicação. A avaliação era de conhecimento dos políticos mais relevantes, de modo que estes tratavam de buscar alianças capazes de gerar tempo de televisão. A combinação entre agrupamentos e capacidade de emitir mensagens era vencedora quase sempre – e envolvia até os que ficavam em segundo lugar e passavam a comandar a oposição, pois via de regra tinham adotado o mesmo procedimento.
Vencedores e vencidos, portanto, partilhavam uma mesma avaliação sobre como fazer uma campanha eleitoral. Além de comprovável com base na empiria, esta avaliação tinha ainda o pendor de tornar extremamente valiosos os políticos e partidos que guardavam posições de maior neutralidade, podendo se aliar a quem quisessem de acordo com os interesses do momento. Eles recebiam grandes ofertas para ir para lá ou para cá com seu tempo na mídia.
Calma, leitor: isto não é exatamente toma lá, dá cá. Dadas as dimensões continentais do país e a imensa latitude das variações de renda, cultura política e interesses, a obra de governar exige ajustes de toda natureza – voltaremos a este importante aspecto mais adiante.
Isso porque antes é necessário notar que o vencedor desta eleição veio a ser justamente aquele que rasgou a cartilha – e impôs a sua.
Para entender bem a radicalidade de sua estratégia para a vitória é preciso começar notando que ela supôs um foco quase exclusivo num caminho novo, enquanto seus adversários trilhavam outro caminho muito assentado na hora de organizar sua apresentação aos eleitores.
Começada a propaganda, este caminho assentado previa um duplo esforço. Era tanto um momento de comunicação, um momento no qual um candidato profere mensagens com suas intenções de governo para o eleitorado, quanto um momento de assumir compromissos formais para a realização das intenções. Neste sentido o balé prévio das alianças e concentração da comunicação gerava também uma peça essencial: o chamado programa de governo, uma espécie de contrato nupcial entre o candidato e o eleitor.
Jair Bolsonaro, desde o primeiro momento, montou toda sua estratégia tendo como norte a concentração da comunicação num meio novo. Ignorou solenemente tanto a televisão como as alianças para obter muito tempo nela. Não se deu ao trabalho de formular um programa de governo consistente.
Ao invés disso, dedicou-se muito seriamente a juntar conhecimento, recursos e alianças para montar uma estrutura de comunicação fundamentalmente montada para empregar um novo elemento de intermediação entre ele e o eleitor.
No que tem de mais aparente, tal estrutura é geralmente percebida pelo genérico de internet.
Em minhas colunas publicadas ao longo da campanha, quando tratava da relação entre o cenário mundial e os desafios brasileiros, toquei umas tantas vezes no assunto, especialmente quando comentava o livro “Ruptura”, de Manuel Castells.
Ele foi um dos primeiros a perceber as relações entre a estrutura da comunicação em rede e a política. Parafraseio o argumento pioneiro, que hoje é lugar comum: a comunicação na era da indústria cultural tinha um grau de formalidade, determinado pelo tamanho do intermediário entre emissor da mensagem e receptor. Num resumo simples relacionado ao novo caso: entre o candidato que promete e o eleitor que escuta a promessa estava um grande intermediário empresarial. Milhões de reais são necessários para fazer um jornal, uma estação de televisão ou uma emissora de rádio, só para ficar nos casos mais conspícuos.
A internet rompeu a barreira. Cada dono de um simples celular é, ao mesmo tempo, emissor e receptor de mensagens. Com isso o poder do intermediário comunicativo cai muito, uma vez que se instaure a possibilidade da comunicação direta.
Tal característica gerou uma interpretação bastante otimista por parte de Castells, baseada fundamentalmente nas vitórias políticas obtidas por jovens que se comunicavam pela rede, na virada do atual milênio. Esta possibilidade sustentava a ideia de uma expansão radical da democracia, tanto na direção da participação direta quanto naquela da montagem de um governo on-line, capaz de funcionar sem os ciclos eleitorais (já que a validação das decisões pela soberania popular poderia ser feita a qualquer momento) quanto dos intermediários tradicionais – sim, os políticos.
Mas até isto tornou-se passado com a campanha vitoriosa.
Embora apregoe este tipo de argumento, a vitória de Jair Bolsonaro é filha de outra era: aquela da inteligência artificial.
Duas mudanças fundamentais aconteceram entre a virada do milênio e o ano de 2018 para marcar as diferenças – na velocidade das transformações trazidas pela informática. A realidade atual na internet é radicalmente diferente do desenho de comunicação direta e horizontal que marcava as análises de pessoas como Castells. Ao longo das últimas duas décadas aconteceu uma monumental concentração de mensagens em torno de dois grandes intermediários entre emissores e receptores: Google e Facebook.
Um único dado dá a medida do poderio econômico destes novos intermediários. Juntas, as duas empresas abocanharão nada menos de 60% de toda a receita com publicidade – no planeta!
Para quem ainda é pouco informado a respeito de concentração no mercado brasileiro, vale ainda acrescentar que a receita de ambas – apenas no Brasil — tem uma magnitude que já as aproxima daquela de todo o Sistema Globo de Comunicação – rádio, editora, jornais, televisão, etc. Como os dois gigantes vão faturar alto com equipes que não chegam ao milhar de funcionários no país, fica claro que suas margens de lucro são muito maiores na operação brasileira – sem falar na escala global.
Domínio quantitativo nas bilhões de comunicações entre pessoas; concentração das receitas econômicas provenientes do envio de mensagens pagas e número muito pequeno de trabalhadores humanos somente são possíveis por causa do emprego maciço de inteligência artificial.
Esta inteligência é aplicada a cada mensagem mandada pelos clientes destas empresas para parentes ou amigos, e também para consultas sobre conteúdos – o que gera algo muito diferente da comunicação horizontal entre pessoas que tanto otimismo gerou duas décadas atrás. Há hoje intermediários organizados e relevantes dentro da própria rede. Tais intermediários têm possibilidades próprias.
Cada mensagem ou consulta a esses intermediários gera também um conjunto dos chamados metadados. Estes metadados são analisados por robôs, por instrumentos de inteligência artificial. Eles são capazes de identificar tendências, gostos, inclinações pessoais de cada usuário. Esta não é uma via de mão única – e aqui entra a revolução comunicativa de Jair Bolsonaro. No lugar de investir em política tradicional ele investiu pesadamente em comunicar-se a partir do emprego concentrado da inteligência artificial como intermediária entre o candidato e os eleitores.
Com esta aposta pesada e concentrada foi capaz de criar toda a dimensão comunicativa de uma campanha para presidente da república do Brasil numa faixa própria, capaz de livra-lo tanto das necessidades de mídia tradicional no momento da eleição quanto dos custos e benefícios das alianças políticas necessárias para se chegar a esta mídia tradicional.
No que se refere ao aspecto mais fundamental de sua campanha, a inteligência artificial aplicada aos metadados gerados pelos usuários de redes sociais foi o elemento central e quase único na construção do vínculo entre o candidato que vem a público e o eleitor que vota – vínculo este expresso no voto que o levou à condição de presidente da república no próximo ciclo.
Tal vínculo dispensou os intermediários tradicionais da mídia e da atividade política. Todos aqueles que empregaram a via tradicional ficaram parados nas preferências populares, enquanto a liderança na rede gerava votos ao vencedor.
Realmente é novidade. Na campanha de 2014, quando as redes sociais ainda não atingiam toda a população, não aconteceu este efeito. Agora o modelo de campanha inovador será avaliado como história – que inclui uma novidade muito antiga, assunto para uma próxima conversa.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 16/11/2018