FHC descreveu-se como o “improvável presidente”, atestando seu reconhecimento de que chegara ao Planalto nas asas de um desvio histórico. Bolsonaro deve a cadeira presidencial a um acaso ainda mais fortuito que o sucesso do Plano Real: a ruína do sistema político da Nova República na moldura de uma profunda depressão econômica.
Mas, ao contrário do sofisticado intelectual, o capitão inculto imagina que seu triunfo deve-se à “necessidade histórica” —isto é, a uma “revolução” propelida pela ideologia. Dessa ilusão nasce a crise crônica que trava o governo e anuncia a sua implosão.
O sistema político edificado três décadas atrás combinou os poderes quase imperiais de um presidente que governa por decretos com as prerrogativas quase ilimitadas de um Congresso fragmentado em miríades de partidos. O presidente fantasiado de soberano precisa, ao longo do mandato, usar seus poderes para construir —e, depois, conservar— uma maioria parlamentar operacional. Bolsonaro não quer —e provavelmente não conseguiria, mesmo se quisesse— engajar-se na missão da governabilidade.
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O impasse tem um contexto. FHC navegou o sistema político a bordo de uma nau mais ou menos estável: a aliança programática PSDB/PFL, que lhe conferia um núcleo sólido de apoio no Congresso. O tucano comprou a governabilidade a custo baixo, praticando moderadamente o esporte da fisiologia. Já Lula pilotou uma nau avariada pela falta de um consenso programático básico na coalizão PT/PMDB/PP e pela multiplicação descontrolada de partidos. O petista abriu as portas da administração pública e das estatais à sanha colonizadora das máfias políticas. Os resultados foram o mensalão, o petrolão e, no fim, a derrubada do edifício pela artilharia da Lava Jato.
O presidente —qualquer presidente eleito na hora da derrocada— teria as alternativas realistas de tentar restaurar o sistema ou de encarar o desafio de reinventá-lo. Bolsonaro, porém, não entende a natureza da encruzilhada. Isolado na concha ideológica de suas próprias redes sociais, singra o mar de destroços girando o timão erraticamente, desorientado por uma bússola que nunca aponta o norte. De um lado, teme uma conspiração parlamentar destinada a envolvê-lo no novelo fatal da fisiologia. De outro, teme uma conspiração do STF e da imprensa destinado a fabricar um impeachment. Na batalha contra os dois moinhos de vento, hostiliza o Congresso, os juízes e a opinião pública, cavando a sepultura de seu governo.
O governo não tem nada parecido com uma base parlamentar. As sucessivas derrotas em votações banais no Congresso, iluminadas pelos clarões de ataques aos parlamentares promovidos por ministros, assessores e filhos do presidente, erguem-se como nuvens de tempestade sobre o projeto de reforma previdenciária. A adição das ruas à equação política semeia o campo da incerteza. A gosma ideológica também é responsável pelo novo componente da crise: foram as repetidas provocações do ministro olavete, não um simples contingenciamento de recursos, que impulsionaram centenas de milhares de pessoas a aderir às manifestações. Da rejeição dos cortes na Educação à recusa da Nova Previdência, o passo depende apenas do ritmo da desmoralização do governo.
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“Idiotas úteis”: não é, ainda, 2013, mas um presidente alheio à realidade esforça-se para recriá-lo. Bolsonaro tem prazo de validade, que não é 2022, mas 2020. Sem uma reforma previdenciária forte, a persistência da estagnação econômica dissolverá a legitimidade política do governo.
No horizonte cinzento, para lá da operação tartaruga do Ministério Público, emergem os contornos agourentos de um certo Adriano e de um tal de Queiroz. O Brasil real quer emprego, renda e serviços públicos, não a “revolução” reacionária do bolsonaro-olavismo. Mas o outono já vai passando, e só a Carolina não viu.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/05/2019