É tarefa ingrata transformar um nacional desenvolvimentista convicto em mocinho liberal
Na segunda-feira, dia 13 de novembro, Jair Bolsonaro brindou os brasileiros com uma carta sobre sua visão – ou a de sua equipe – sobre a economia, assunto que já admitira não dominar. Começa e acaba seu manifesto – primeiro de vários, afirma – destacando a necessidade de um Banco Central independente, ressaltando o respaldo acadêmico internacional e a desastrosa gestão de Dilma Rousseff como razões para a independência. Em tempo: Dilma Rousseff não está em campanha para a Presidência. Mas a cereja do bololô? Bolsonaro já se declarara contra a independência do Banco Central afirmando que se isso fosse feito, o presidente tornar-se-ia “refém do sistema financeiro”, segundo noticiou este jornal em abril deste ano. Vamos ao resto dessa metamorfose ambulante, a Bolsonomia?
O manifesto: “Sabemos que iremos enfrentar grupos organizados sem escrúpulos que, novamente, farão qualquer coisa para vencer as próximas eleições. Nossa arma será a verdade! Enquanto a esquerda prefere gurus do Nacional Socialismo como Joseph Goebbels: ‘Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade’, nós ficamos com Galileu Galilei: eppur si muove! Todavia, a convicção de que venceremos vem de João 8:32: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
Curiosa a citação bíblica junto com Galileu no manifesto ‘econonaro’. Afinal, o matemático, físico e filósofo italiano teria proferido a frase “E, ainda assim, se move!” contrapondo as declarações da Igreja em contrário, a ideia de que os corpos celestes é que se moviam em torno da Terra, estática. O pronunciamento de Galileu é, hoje, réplica assertiva: “não importa em que você acredita, o que interessa são os fatos”. E os fatos são que a Bolsonomia está bem longe da economia. A retórica da “carta” é tentativa simplória de agradar ao mercado, aos empresários, de emplacar Bolsonaro como defensor do liberalismo econômico. É tarefa ingrata transformar um nacional-desenvolvimentista convicto em mocinho liberal.
Segue: “Voltando à economia e olhando para um horizonte mais distante, o Brasil precisa ter instrumentos modernos e voluntários para elevar sua poupança interna. Juros é o preço do crédito. Exatamente como qualquer outro produto, desde tomates até carros, pouca oferta e muita demanda resultam em um preço elevado. No Brasil temos pouca poupança interna (pouca oferta de crédito) e enormes demandas reprimidas (muita demanda por crédito) com investimentos óbvios em infraestrutura ou o potencial de crescimento do consumo de bens duráveis, educação superior, habitacional, etc”. Sim, o trecho é difícil de entender. E, sim, nossa poupança é baixa. Mas, quais são esses instrumentos modernos e voluntários para elevá-la? Nossos juros são altos, mas o que isso tem a ver com os tomates? Há tempos se sabe que os juros não são altos porque há pouca oferta de crédito. Os juros são altos porque o mercado financeiro brasileiro é repleto de distorções. Não faltam artigos acadêmicos identificando-as, a começar por alguns de minha própria autoria. A redução estrutural dos juros no Brasil passa por ampla reforma financeira que redesenhe o papel dos bancos públicos, elimine os fundos de poupança forçada, e acabe com o crédito direcionado. Será realmente possível acreditar que um nacional-desenvolvimentista queira extinguir o crédito direcionado? Não à toa, a carta da Bolsonomia aos brasileiros não articula como pretende o candidato reduzir os juros e destravar a poupança para financiar sua lista de obviedades.
E, de repente: “Mesmo assim, o déficit em transações correntes prova que o financiamento do déficit do setor público vem do exterior”. Confesso algum susto com essa passagem. Afinal, qualquer aluno de primeiro ano de economia sabe que o déficit em transações correntes é financiado pela poupança externa – tal constatação vem da contabilidade básica do balanço de pagamentos. Quanto à afirmativa de que o déficit em transações correntes “prova algo” sobre o déficit público, o fato observado é que o déficit externo caiu, enquanto o do setor público subiu. Não sei como conciliar isso com os ditames da Bolsonomia.
O que sei é que as aulas de economia do deputado-candidato estão rendendo pitadas de surrealismo tragicômico. Daqui a pouco, estaremos vendo a cara de Dilma no corpo de Bolsonaro.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 15/11/217
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