Depois de encontrar o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, a chanceler alemã, Angela Merkel, soltou ontem uma frase que deu esperanças de que possa haver dentro dos próximos 30 dias um novo acordo para o divórcio do Reino Unido da União Europeia (UE). “Por que não?”, disse Merkel. O objetivo evidente é evitar a perspectiva catastrófica de um Brexit sem acordo, o cenário “no deal”.
De acordo com um relatório secreto do goveno revelado pelo Sunday Times, a saída da UE sem acordo no próximo dia 31 de outubro – data fatídica marcada para o Brexit – provocaria desabastecimento imediato de comida e remédios, atrasos em portos, filas de caminhões nas alfândegas e dificuldades no controle de passaportes em postos fronteiriços. Os planos de contingência para o “no deal”, reunidos sob a alcunha “Operação Yellowhammer”, levariam ao menos três meses para resgatar uma aparência de normalidade.
O governo afirmou que se trata apenas de um exercício hipotético sobre o pior cenário. Mesmo assim, apesar de Boris volta e meia repetir a ameaça de divórcio abrupto que o levou a conquistar o comando dos conservadores, ninguém tem muita vontade de saber o que aconteceria caso a Operação Yellowhammer tivesse mesmo de ser deflagrada. O próprio Boris ainda tenta evitá-la.
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Para isso, deverá se encontrar hoje com o presidente francês, Emmanuel Macron, e repetir seu pedido para que a UE retire do acordo fechado no final do ano passado pela ex-premiê Theresa May o dispositivo criado para manter aberta a fronteira entre as duas Irlandas, conhecido como “backstop” (rede de segurança). O “backstop” custou a May o apoio dos defensores de uma ruptura mais radical com a UE e levou a sua queda.
A exemplo deles, Boris considera o dispositivo “antidemocrático” por permitir, caso não haja um tratado de livre-comércio depois da transição de dois anos, que o Reino Unido permaneça por tempo indefinido numa união aduaneira com a UE – e mantivesse, portanto, as fronteiras abertas à circulação de pessoas, anátema para os defensores do Brexit. O “backstop” é visto como armadilha para implantar um Brexit de fachada.
A UE já afirmou repetidas vezes que não reverá o acordo fechado por May e insiste no “backstop” como forma de manter aberta a fronteira entre as duas Irlandas – e de preservar a paz firmada há duas décadas entre católicos e protestantes. Apesar do aceno de Merkel, a esperança de que Boris seja bem-sucedido na tentativa de revê-lo é nula. É inviável negociar, em apenas um mês, qualquer acordo que eliminasse a necessidade do “backstop”.
O que acontecerá nesse período, sem dúvida alguma, é o desafio a Boris no Parlamento britânico, que retorna do recesso no início de setembro. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, se aproveitará da situação para tentar derrubar o rival apresentando uma moção de desconfiança.
Corbyn convocou, também para hoje, uma reunião entre os partidos oposicionistas e conservadores descontentes com a perspectiva do “no deal”, sob o pretexto de discutir a melhor estratégia para evitá-lo. Ele pretende se apresentar como um premiê de conciliação temporário, que adie o Brexit enquanto o país aguarda novas eleições.
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A ideia de ter um radical de esquerda no poder, ainda que nessas condições, obviamente não agrada nenhum conservador, nem mesmo os mais moderados. Não existe ainda outro nome de consenso, e Corbyn, líder do maior partido da oposição, não abre mão de assumir o poder caso Boris seja derrotado.
Outras possibilidades em discussão envolvem a revogação do Brexit pelo Parlamento se não houver acordo até 31 de outubro, uma nova votação do acordo fechado por Theresa May (desta vez com apoio dos conservadores dissidentes ao “backstop”) ou um adiamento parlamentar do Brexit até novas eleições, mesmo que Boris permaneça no poder.
Nada disso está descartado. Ninguém sabe o que acontecerá. Antes de enfrentar um Parlamento hostil, Boris tenta sua última cartada para evitar empurrar o Reino Unido no abismo do “no deal”. Pode acabar caindo nele sozinho.
Fonte: “G1”, 22/08/2019