Apesar da derrota, no último sábado, em sua tentativa de aprovar o acordo para o Brexit que fechou com a União Europeia (UE), o premiê britânico, Boris Johnson, mudou substancialmente o panorama político em torno da questão. Ao longo dos últimos três anos e meio, nunca o Reino Unido esteve tão perto de um desfecho para a novela do divórcio que exaspera o país. Não será o final, mas o início de uma nova fase, em que os dois lados passarão a negociar o status definitivo de sua nova relação.
Toda cautela é necessária ao falar em Brexit. “Nunca foi fácil”, diz David Henig, diretor de política comercial para o Reino Unido no Centro Europeu para Economia Política Internacional (Ecipe). Agora, contudo, tanto o lado europeu quanto o britânico parecem caminhar para um divórcio em torno do acordo de Boris, ainda que o mais provável seja um novo adiamento, de ordem técnica, para que ele possa ser examinado em detalhes – e para que a legislação necessária seja submetida a ambos os Parlamentos.
Nenhum dos três cenários anteriormente disponíveis – novo plebiscito, divórcio sem acordo ou o acordo anterior, fechado pela ex-premiê Theresa May – contava com maioria no Parlamento britânico (para entender melhor o impasse, leia meu post “O teorema do Brexit impossível”). O acordo de Boris ofereceu uma quarta saída, antes não disponível, que será doravante submetida ao teste político. Sempre pode fracassar, mas é em si um fato novo.
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Em vez de tentar agradar a todos como May, Boris tomou uma decisão: sacrificou os 10 votos dos unionistas norte-irlandeses no Parlamento, ao aceitar controles alfandegários entre Reino Unido e Irlanda do Norte. Obteve um acordo bem menos ambicioso que o de May na meta final de integração com a UE. Com isso, conquistou a ala mais radical dos partidários do Brexit, os 28 parlamentares ligados ao European Research Group (ERG) conhecidos como “espartanos”.
No sábado, em vez de votar imediatamente o acordo de Boris, o Parlamento britânico aprovou uma emenda exigindo que o governo submeta a votação as mudanças na lei correspondentes ao conteúdo do acordo, antes de poder ratificá-lo formalmente.
Mesmo tendo perdido por 322 votos a 306 – e mesmo tendo sido, em virtude disso, obrigado a pedir à UE um novo adiamento na data do Brexit –, Boris não foi ainda derrotado. Nem todo parlamentar que votou pela emenda é contrário ao acordo. Muitos apenas queriam mais tempo para examiná-lo, uma vez que o governo não forneceu nem números nem análises para embasar a votação, apenas o texto final.
Na contagem voto a voto do resultado, os cálculos demonstram haver uma maioria estreita, entre 3 e 5 votos, a favor do acordo no Parlamento. É com ela que Boris conta para aprovar ainda esta semana (talvez amanhã) a Lei do Acordo de Retirada, passo exigido pela emenda aprovada no sábado.
A oposição trabalhista já começou a se mexer para tentar desfazer essa maioria frágil. Negocia uma aliança com o Partido Democrático Unionista (DUP), traído por Boris, e com parlamentares conservadores favoráveis à permanência na UE. O objetivo é tentar impor duas emendas. A primeira exige um referendo popular para a ratificação de qualquer acordo. A segunda tenta mudar a meta para o status final do relacionamento com a UE depois do Brexit.
O acordo fechado por Boris prevê que, se não houver um tratado de livre-comércio entre UE e Reino Unido até 31 de dezembro de 2020, a situação será equivalente ao divórcio sem acordo, com a imposição tarifas, controles fronteiriços e barreiras alfandegárias (exceto no caso da Irlanda do Norte, que permaneceria integrada à Irlanda).
É até provável que o período de transição seja adiado, mesmo assim a maioria dos parlamentares quer evitar de todo modo esse cenário, catastrófico para economia. Para vários trabalhistas, a meta deveria ser manter o Reino Unido numa união aduaneira com a UE, preservando regulamentos sociais ou ambientais. Anátema para os tais “espartanos”, tal saída é vista pelos defensores de uma ruptura menos radical como alternativa a um segundo referendo, que poderia revogar o Brexit. Será ela o objeto da outra proposta de emenda.
Ainda que o acordo de Boris passe incólume pelo Parlamento britânico, nada garante a aprovação no Parlamento europeu, que começará a examiná-lo na próxima quinta-feira. Os parlamentares europeus querem decifrar as implicações em detalhes. A ideia da união aduaneira dificilmente seria aceita de modo automático. Também para eles, um novo adiamento se faz necessário.
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Qualquer que seja a decisão sobre a data do Brexit, Boris transformou a percepção do Brexit entre os líderes europeus. A maioria quer virar a página para dedicar energia a questões mais prementes, como a perspectiva de recessão na Alemanha, a resposta à crise na Síria ou a telefonia celular de quinta geração.
Os europeus só deverão esperar a votação no Parlamento britânico para decidir sobre a extensão do adiamento: ou de poucas semanas, apenas para assegurar tempo aos trâmites legislativos, ou um pouco maior, suficiente para dar tempo a um novo referendo ou novas eleições, caso os britânicos decidam se livrar de Boris com uma moção de desconfiança (para a qual, os cálculos também sugerem haver maioria parlamentar). Nada está definido. Brexit nunca foi fácil mesmo. Mas hoje a novela está mais perto dos capítulos decisivos, que abrirão a nova temporada de negociação sobre o status definitivo.
Fonte: “G1”, 21/10/2019