Nas horas e dias seguintes à minha exoneração, por ordem do chanceler Ernesto Araújo, do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), as pessoas quiseram saber, além dos motivos da demissão, minha opinião sobre a atual política externa do Itamaraty. Tive de perguntar a elas: “Vocês conhecem alguma? Digam-me qual é, para eu poder avaliá-la”.
Sinceramente não tenho uma resposta, pois nunca nos foi oferecida uma apresentação abrangente, sistemática e completa de qual seria a estratégia internacional do Brasil, quais suas prioridades regionais e multilaterais, como pretendemos organizar a abertura econômica e a liberalização comercial, o que fazer com o Mercosul, como resolver os desafios da inserção global do país nos grandes circuitos da economia mundial, as relações com os vizinhos e todo o resto. Recapitulando o discurso de inauguração do presidente, temos poucas diretivas, entre elas uma política externa sem ideologia e um comércio exterior idem. O discurso de posse do chanceler, por sua vez, foi do grego ao latim — e até ao tupi-guarani — para dizer que tínhamos sido muito subservientes ao marxismo cultural e que cabia “libertar o Itamaraty” da influência nefasta dos petistas (já lhe avisaram que os companheiros se foram em 2016?).
Desde então, aguardamos uma manifestação mais concreta sobre como será essa política externa, desconhecida de meus colegas diplomatas e dos brasileiros. O que tivemos, até aqui, foram eflúvios bizarros contra o “globalismo”, sustentados em teorias conspiratórias de um famoso guru ideológico, o sofista da Virgínia, um grande eleitor do atual governo. Todo o resto foram recuos e tergiversações.
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Base militar americana no Brasil? De forma nenhuma, alertaram os militares! Mudança da embaixada em Israel para Jerusalém? Alto lá, gritaram os agricultores e exportadores de carne halal para países islâmicos! Denúncia do Acordo de Paris? Mas os ecologistas e os próprios empresários já disseram que ele é positivo para o Brasil, e não implica renúncia de soberania. E onde está a China “maoista” que representaria, supostamente, uma ameaça? Essa China não existe há mais de quarenta anos: os chineses só querem importar matérias-primas, exportar manufaturados, garantir sua segurança alimentar e energética, coisas que o Brasil pode fazer muito bem (com mais investimentos… chineses). Alinhar-se a Trump para “salvar o Ocidente”? Qual é o maluco que acredita numa coisa dessas?
O tema que está na ordem do dia, a terrível crise na Venezuela, recebeu, inicialmente, tratamento pouco diplomático: primeiro, a recusa de qualquer diálogo com o governo ditatorial; depois, a “instrução” dada a nossos diplomatas em Caracas de que deveriam reportar-se não a Maduro mas unicamente a Guaidó, embora este não tenha controle algum sobre os mais modestos mecanismos administrativos do país; em seguida, a ruptura de relações militares com os bolivarianos, o que irritou nossa tropa e levantou os alarmes no núcleo mais racional do governo.
As inconsistências nessa área foram tantas que logo se instalou um “cordão sanitário” em volta do chanceler para impedi-lo de fazer aquilo que está expressamente proibido pela Constituição: imiscuir-se nos assuntos internos de outros países. Foi preciso que o vice-presidente Hamilton Mourão se tornasse o chefe da delegação brasileira na reunião do Grupo de Lima, em Bogotá, para evitar mais um gesto de insanidade do chanceler: apoiar uma aventura militar contra o nefando regime chavista-madurista. A Venezuela é um grande teste para o governo, mas parece que os militares assumiram o papel dos diplomatas e estão cuidando do assunto.
Volto a perguntar: onde está a política externa do Brasil? Nos destemperos olavistas contra o globalismo? Na luta contra o marxismo cultural? Numa aliança com todos os regimes direitistas e xenófobos da Europa e com Trump? Na denúncia do Pacto Global para Migração, apesar de o Brasil possuir pelo menos três vezes mais emigrantes do que imigrantes e esse acordo não afetar em nada nossa soberania? Um desses tresloucados chegou até a dizer nos Estados Unidos que os brasileiros apoiam a construção do muro que Trump pretende erigir na fronteira com o México!
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O que pretende, exatamente, o chanceler? Ele começou subvertendo a hierarquia do Itamaraty, com “coronéis” dando ordens a “generais” — ou seja, ministros de segunda classe comandando embaixadores mais experientes. Depois, impôs uma reforma autoritária, feita no bunker do governo de transição, inclusive por amadores externos, e alterou significativamente estruturas mais racionais, ainda que muito extensas, da administração anterior. Os Estados Unidos constituem um departamento exclusivo, mas a Europa encontra-se relegada à vala comum da África e do Oriente Médio, já que ela seria um “vazio cultural”, segundo um artigo surrealista publicado nos Cadernos de Política Exterior do Ipri, que eu dirigia até ser defenestrado. E como fica a recomendação de ler menos o jornal The New York Times?
O Brasil é hoje o país mais introvertido do G20, o grupo de nações economicamente mais importantes do mundo. Todas exibem coeficiente de abertura externa e participação em cadeias de valor bem superiores aos nossos. Está mais do que na hora de substituir uma mal definida “diplomacia do desenvolvimento com preservação da autonomia nacional” por uma vigorosa política de “integração à economia mundial”, assim como eliminar o determinismo geográfico de um fantasmagórico “Sul Global” e voltar ao universalismo tradicional da política externa e da diplomacia brasileira.
Sobre minha exoneração, permito-me registrar que o ministro está me negando a mesma liberdade de opinião que ele teve para alimentar seu blog com vituperações antipetistas — quando nada tinha feito nos treze anos do PT no poder. Agora, o chanceler quer cercear-me o direito de alimentar um blog com material, aliás, veiculado nos próprios clippings de notícias da Casa. Estou fora do Ipri, mas continuo sendo um funcionário do Estado e deixo um recado aos que pretendem me calar: a despeito das punições que recebi no Itamaraty por publicar artigos adequados a meu papel de diplomata, eu me atribuí, assim como James Bond com sua permissão especial para matar, uma permissão especial para dissentir.
Fonte: “Veja”, 08/03/2019