Fim de ano nos chama à reflexão. Uma espécie de retrospectiva do que de mais relevante ocorreu nas nossas vidas. Fatos que alteram o curso da nossa história. Que chegam quase a mudar o nosso DNA e, portanto, nos fazem trilhar uma nova trajetória. Para o bem ou para o mal, eventos dessa magnitude não acontecem todos os dias. Vivemos na maior parte do tempo numa condição de piloto automático, em que, mesmo insatisfeitos, continuamos nas nossas rotinas sem realizar grandes transformações. Quando mudanças acontecem, elas são apenas pontuais, como se fossem pequenos ajustes de percurso.
Há ocasiões, entretanto, em que somos acometidos por grandes choques (endógenos ou exógenos) que, se aproveitados, têm potencial de nos catapultar para uma nova direção… para um novo equilíbrio.
Assim como fumantes inveterados podem parar de fumar quando descobrem que o seu melhor amigo está prestes a morrer de câncer de pulmão ou obesos podem passar a reeducar sua alimentação e a praticar exercícios físicos de forma regular após descobrirem que uma de suas artérias coronárias está obstruída, sociedades que se aprisionaram em equilíbrios insatisfatórios durante décadas, caracterizados pelo vale-tudo da corrupção sistêmica, podem, a partir de um evento inusitado ou crise generalizada, mudar o rumo da sua história.
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Como reflexão de maior fôlego, o editor de Política do Estado sugeriu que minha última coluna do ano fosse dedicada à análise do evento político mais relevante para o Brasil, não apenas de 2019, mas da última década. Vários fatos políticos foram relevantes nesse período. Mas dois, para mim extremamente concatenados, alteraram definitivamente a trajetória do País. Refiro-me especificamente ao julgamento do mensalão e à Operação Lava Jato.
Esses eventos acarretaram mudanças sem precedentes em várias dimensões da vida política, econômica e ética do País. O julgamento do mensalão quebrou o paradigma predatório de que ricos e poderosos sempre encontrariam maneiras de se livrar de condenações judiciais pelos seus crimes. Os números das 113 operações da Lava Jato falam por si sós: 186 ações penais; 204 condenados; 96 acordos de colaboração; 19 acordos de leniência; mais de R$ 14 bilhões previstos de recuperação. Na conta da Lava Jato também é possível incluir o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff por crimes fiscais e orçamentários, o surgimento de uma direita eleitoralmente competitiva à Presidência da República, fato comum em democracias desenvolvidas, bem como investigação do filho do atual presidente.
Esses eventos certamente não livrarão o País de comportamentos desviantes de agentes políticos, atores econômicos e burocratas. Mas, seguramente, os riscos e os custos de tais comportamentos aumentaram exponencialmente.
Mesmo diante de mudanças institucionais de ampla magnitude que o Brasil tem vivido nesta última década, não é possível assegurar que o País estará imune a retrocessos. Uma vez no trilho, trens podem descarrilar. A recente decisão da Suprema Corte de que a execução da pena de um condenado pela Justiça só pode ter início após o trânsito em julgado, e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau, pode ser interpretada como uma reversão no combate à corrupção. Mas a observação de eventos isolados às vezes gera falsas interpretações do que de fato está acontecendo. Da mesma forma que implementar reformas tem custos, reversões institucionais também têm custos.
Democracias maduras e consolidadas também apresentam inconsistências ao longo da sua história. Após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, os EUA, a partir da sua agência de inteligência (CIA), passaram a adotar técnicas de tortura como meio de obter informações de pessoas supostamente ameaçadoras sob a justificativa de evitar a todo custo novos ataques terroristas. O reconhecimento público e o repúdio de tal prática abominável pelo governo subsequente recolocaram a democracia americana no seu curso.
Desenvolvimento, portanto, não é linear nem constante em nenhum lugar do mundo. O importante é cuidar para que potenciais desvios não se transformem em mudanças de direção.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 30/12/2019