Embora ainda não tenha sido decidida em vários Estados e na principal disputa, pela Presidência da República, a eleição de 2018 já desmascarou muitas farsas e desmanchou vários mitos de pés de barro, que terminaram sucumbindo a novos parâmetros, até então desconhecidos.
O título e a linha fina da coluna do colega Celso Ming na Economia & Negócios do Estado de sábado, 13, são de uma abrangência e de uma síntese notáveis – A grande indignação: alcance da comunicação instantânea mudou tudo. Os chefões das organizações partidárias não contavam com a volta dada pelo povo à sua imposição de regras adotadas para garantir a reeleição e a consequente impunidade. O ano eleitoral começou com uma onda de “não reeleja ninguém”, mas ela foi invertida com a perspectiva de um duelo final entre grandes e tradicionais coalizões partidárias, que manejaram os instrumentos de sempre: a obrigação da filiação partidária antecipada dos candidatos, a distribuição continuísta do tempo na propaganda das legendas nos meios de comunicação de massa e, sobretudo, o financiamento público das campanhas. Neste caso, a proibição de doações de pessoas jurídicas deteve a marcha sem freios dos gastos e, em consequência, da corrupção no financiamento de palanques, contaminados pelo despudor da propina negociada com fornecedores de obras e serviços públicos. Mas o cinismo dos “donos do poder” (apud Raimundo Faoro) não conhece limites e chegou ao ponto de obrigar o cidadão a bancar os gastos de grupos políticos que, na exata (e humilde) definição do senador José Agripino Maia (DEM-RN), derrotado nas urnas, “não os representam mais”.
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A renovação das bancadas da Câmara e do Senado (52%) ainda não permite pôr fim às relações promíscuas entre Legislativo e Executivo. Mas sendo a maior dos últimos 20 anos e representando um “quem avisa amigo é” por parte da opinião pública, permite, no mínimo, reduzir a condição de mercado de barganha explícita entre governo e Congresso.
Com oito segundos, quase a metade dos 15 no horário eleitoral no rádio e na TV usados pelo dr. Enéas em 1989, afastado da campanha, hospitalizado após ter sido esfaqueado em 6 de setembro, em Juiz de Fora (MG), e, portanto, também faltando aos debates, Jair Bolsonaro chegou a 49 milhões 387 mil e 416 votos em 7 de outubro, ou seja, 46,05%, a menos de quatro pontos de atingir a maioria absoluta. Seu adversário no segundo turno, Lula/Fernando Haddad, do PT, chegou a 31 milhões 361 mil e 213, ou seja, 29,24%. Na onda de saco cheio com o PT, não de direita “radical”, foram eleitos 52 deputados do PSL, que na atual legislatura conta com um membro só, como a nota do “sambinha” de Tom Jobim.
O candidato do PSL comunicou à Justiça Eleitoral ter desembolsado R$ 1,2 milhão na eleição: R$ 0,03 por voto. Seu adversário petista investiu R$ 12.019.711,45, o equivalente a R$ 0,38. O valor, porém, sobe para R$ 0,99 – 33 vezes mais do que o do adversário, se adicionados os R$ 19.118.635,26 gastos pela campanha do ex-presidente Lula, cuja candidatura foi impugnada pela Justiça Eleitoral. São despesas muito menores do que os R$ 600 milhões (atuais R$ 741 milhões) que teriam sido usados para a vitória de Dilma Rousseff e Michel Temer em 2014, de acordo com delação premiada do coordenador da campanha da ex-presidente petista em 2010, Antônio Palocci. Ou seja, a dobradinha PT-PMDB gastou 740 vezes mais do que a chapa Bolsonaro-Mourão e 37 vezes mais do que Lula-Haddad agora, se for levada em conta a desvalorização do real nos últimos quatro anos (23,62%).
Por uma questão de coerência, o presidente a tomar posse em 2019 terá a obrigação moral de conseguir a aprovação no Congresso da extinção do Fundo Partidário e de medidas que impeçam a derrama de recursos públicos que tornam proibitivos os custos de eleição e estimulam a corrupção.
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Os valores citados justificam a “pré-racionalidade” do povo, que meu saudoso amigo Mauro Guimarães enxergava nos resultados eleitorais de antanho. E que hoje explica, só para dar um exemplo à mão, a derrota de Dilma Rousseff numa eleição para dois senadores em seu Estado natal, Minas Gerais, e os 2 milhões de votos para a Assembleia paulista de Janaína Paschoal, autora do processo do impeachment dela.
Antes de decidir, definitivamente, quem ocupará o cargo mais poderoso da República, daqui a dois domingos, num processo democrático e, até prova em contrário, limpo, o sofrido cidadão brasileiro, vítima dos recentes desgovernos, deixou nas urnas lições que não podem ser omitidas. As férias forçadas de Romero Jucá, Lindbergh Farias, Roberto Requião, Beto Richa, Darcísio Perondi, Lúcio Vieira Lima e outros próceres punidos na urna são exemplares.
Mas esse não é o único motivo pelo qual manifesto em tinta sobre papel profunda repugnância pelas manifestações de desprezo que a maioria espetacular da cidadania tem sofrido por ter resolvido afastar do poder chefões partidários que abusaram da “regra três” cantada por Vinicius e Toquinho. No chororô desesperado da humilhação pelo voto, esses profissionais da política falam em “marcha da insensatez” e em “bloco de sensatez” para detê-la, na tentativa de desqualificar como neofascista a opção contrária à manutenção das velhas práticas da gastança e da leniência com a corrupção.
Ciro Gomes, do PDT de Brizola, pretensa terceira via, foi terceiro lugar, com 12,47% dos votos. Geraldo Alckmin, cujo partido, o PSDB, ocupou por 24 anos o governo do maior Estado do Brasil, obteve 4,76%. Marina Silva, 1% (!), menos do que João Amoedo (2,51%), Cabo Daciolo (1,26%) e Henrique Meirelles (1,20%). Nada disso é desonroso: o dr. Ulysses Guimarães também foi humilhado assim. Mas nem por isso insultou de cego, nazista ou insensato quem ele próprio chamou de “sr. cidadão”. Perder dói, mas em dois anos tem outra.
Fonte: “Estadão”, 17/10/2018