Em setembro de 1913 Candido Mariano Rondon foi atingido por uma flecha nhambiquara. Não permitiu que seus soldados reagissem. Os que o seguiam deveriam saber o seu lema: “Morrer se preciso for. Matar, nunca”.
Com seu humanismo positivista foi uma antítese dos generais norte-americanos Custer e Sheridan, para quem “índio bom, era índio morto”.
Rondon criou, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois transformado em Fundação Nacional do Índio (Funai). Foi a figura central na demarcação das primeiras terras indígenas, como o Parque Nacional do Xingu.
Com apenas uma canetada o presidente e ex-capitão Jair Bolsonaro conseguiu, nesta quinta-feira (20), conspurcar o legado do Marechal do Exército, Cândido Rondon, além de violar a Constituição e afrontar o Congresso Nacional.
Após séculos de pilhagem e violência, a Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas os direitos “originais” às terras que tradicionalmente ocupam, assim direitos à organização social, costumes, línguas e crenças próprias. A União foi incumbida de demarcar as terras e proteger os direitos dos indígenas (artigo 231).
Leia mais de Oscar Vilhena
Legalismo autocrático
Judiciário e a democracia
Setores diretamente interessados na exploração das florestas, rios e, especialmente, riquezas minerais existentes nas terras indígenas, jamais se conformaram com a forma robusta como os direitos dos índios foram assegurados pela Constituição de 1988. Com o objetivo de frustrar esses direitos, especialmente às terras originais, o governo editou, em 1º de janeiro 2019, a medida provisória 870 que, entre outras iniciativas, transferiu para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas, que antes pertencia à Funai.
A manobra foi expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional. Inconformado com a derrota, o presidente Bolsonaro editou a MP 886, reiterando sua determinação de transferir a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas ao Ministério da Agricultura.
Além de uma afronta ao Congresso Nacional, a manobra é expressamente proibida pelo artigo 62, parágrafo 10 da Constituição Federal (emenda 32/2001), ao estabelecer que é “vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada” pelo Congresso Nacional.
Esse tipo de burla, aliás, já havia sido vetada pelo Supremo Tribunal Federal, durante o governo Collor. Em voto considerado “antológico” pelo Ministro Sepúlveda Pertence, o jovem Ministro Celso de Melo, hoje decano do Supremo Tribunal Federal, deixou claro que a reedição de medida provisória, expressamente rejeitada pelo legislador, era uma espécie de fraude constitucional.
De acordo com o Ministro, não basta ao governante ostentar títulos de legitimidade, “é preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional…”. Ao Supremo caberia a função de “progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder”, sem o que não se alcançaria “a interdição de seu exercício abusivo” (ADI 293-7).
+ Veja como você pode nos ajudar a dar continuidade aos nossos projetos!
As ameaças aos direitos indígenas têm se avolumado nos últimos meses. As propostas de reverter demarcações já realizadas e paralisar as que estão em curso, além da iminência de violação da Convenção 169 da OIT, com a passagem do linhão sobre as terras dos Waimiri-atroais, sem a prévia e devida consulta à população indígena, apontam que nossos governantes parecem estar mais alinhados às constrangedoras ideias do general Custer, do que ao extraordinário e generoso legado de marechal Rondon.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 22/06/2019