Pense nas clássicas perguntas eliminatórias. Existem as vitais (“está grávida?”, para receitar certas drogas), as pertinentes (“você já tem 18 anos?”, para servir bebidas alcoólicas), as burocraticamente tolas (“é ou foi filiado a um partido comunista?”, para conceder vistos americanos) e as infames (“define-se como negro?”, para aceitar a inscrição do candidato em concursos com reservas “raciais”).
Eu sugiro aos jornalistas que escrevam nos seus blocos de notas (ok, jovens repórteres, nos celulares) uma indispensável questão eliminatória a ser formulada em entrevistas com figuras icônicas da esquerda brasileira: “e a Venezuela, camarada?”.
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Na Folha (29/12/17), Marcelo Freixo, líder do PSOL, passou ileso. A entrevista navegou por Guilherme Boulos (“essa radicalidade é a melhor coisa que pode acontecer pro Brasil”), Lula (que circula “de braços dados com Renan Calheiros”), Sergio Moro (“não dá para achar que os fins justificam os meios”) e os direitos humanos (“quem trabalha com direitos humanos não trabalha com zona sul” do Rio), mas nadica de Venezuela. “Quem trabalha com direitos humanos” seleciona ditaduras virtuosas, autorizando-as a violá-los? –eis a pergunta, tão óbvia quanto esclarecedora, que nunca foi formulada.
Nicolás Maduro rasgou um véu diáfano em julho de 2017, trocando a Assembleia Nacional eleita democraticamente, de maioria oposicionista, por uma Constituinte chavista. A inauguração ditatorial foi saudada por uma nota do PSOL de “solidariedade à revolução bolivariana”. “Não há meio-termo”, alertava sinistramente o partido que junta no seu nome as palavras “socialismo” e “liberdade”.
Liberdade só para o partido governista, liberdade como privilégio –é essa a liberdade da “esquerda do século 21”? A pergunta ausente definiria o lugar político e filosófico de Freixo –e, ainda, do próprio Boulos, seu candidato presidencial.
A Venezuela converteu-se em Estado falido. Sob o chavismo crepuscular, as carências estendem-se até o universo dos alimentos básicos, dos itens de higiene cotidiana, dos remédios simples e materiais hospitalares rudimentares. O desespero popular, a violência policial e a corrupção pervasiva formam o caldo de uma guerra civil de baixa intensidade.
O “socialismo do século 21” produziu uma crise humanitária comparável à que aflige zonas de guerra no Oriente Médio e na África. Quantos saques de supermercados, quantos emigrantes, quantos mortos em corredores de hospitais depauperados serão necessários para que a Venezuela ingresse no diálogo político brasileiro? Com que cara o PSOL denuncia Bolsonaro e sua corja de saudosos da ditadura brasileira enquanto celebra a ditadura chavista?
Freixo conta que levou Boulos à casa de Paula Lavigne, “para conversar com setores da intelectualidade, do meio artístico”. Lá, perguntaram-lhe se “o que vocês fazem é invadir a casa de alguém?”. Imagino o sopro de angústia que atravessou a reunião dos com-teto (e que tetos!) do eixo Leblon/Lagoa.
Sei que o Brasil é um país paroquial, absorto, ensimesmado –mas Caetano Veloso pontifica sobre a Palestina. Ninguém perguntou nada sobre a Venezuela? Num ato público, em setembro, ao lado de representantes consulares venezuelanos, Boulos qualificou o regime de Maduro como “o bastião da resistência na América Latina”. É esse o teu candidato, Freixo?
A pergunta que a repórter da Folha não fez é sobre o Brasil –mais precisamente, sobre a natureza da esquerda brasileira. Nem todos, nesse campo, estão dispostos a reproduzir o discurso liberticida de Boulos –mas quase todos preferem calar.
A pergunta eliminatória cumpre a função indispensável de fazê-los falar, marcando um divisor de águas. Com Maduro ou contra ele? Os segundos têm um lugar legítimo no nosso debate público. Os primeiros são Bolsonaros, apenas com sinal invertido.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 06/01/2018
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