Diante da escalada de eventos nos últimos dias associados à pandemia do coronavírus, o nível de incerteza em relação ao desempenho da economia mundial elevou-se de forma extraordinária.
Trata-se de um choque econômico sem precedentes por diversos motivos. Em primeiro lugar, é uma crise global e de rápida propagação, que magnifica problemas sociais já existentes, como a elevação da desigualdade em países desenvolvidos nas últimas décadas, e a ausência de proteção social de trabalhadores informais em países pobres e em desenvolvimento.
Segundo, a pandemia do coronavírus não representa somente um choque negativo de oferta, com grande potencial disruptivo da oferta de bens e serviços, mas também pode resultar em enorme queda da demanda, diante da perda de renda das famílias.
Terceiro, diferentemente da crise internacional de 2008, que atingiu principalmente a indústria, esta pandemia afeta todos os setores. Em particular, as medidas de distanciamento social, que são indispensáveis para evitar a propagação do vírus, atingem em cheio o setor de serviços, que concentra a maior parcela do PIB e do emprego em grande parte dos países.
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Esses problemas serão amplificados no Brasil por diversas razões. Como discuti na última coluna, a incerteza elevada tem sido o principal fator responsável pela lenta recuperação da economia brasileira desde o fim da recessão. Essa incerteza resultava principalmente de variáveis domésticas, de natureza fiscal e política, mas agora será agravada pelo aumento extraordinário da incerteza global.
Como também tenho discutido neste espaço, uma característica marcante da lenta recuperação dos últimos anos foi a persistente elevação da informalidade, mesmo quando o desemprego começou a cair. Com mais de 40 milhões dos trabalhadores na informalidade, cerca de 27 milhões desempregados e subempregados, e a possibilidade concreta de elevação do desemprego e da informalidade, existe o risco de uma crise social de grandes proporções.
Além disso, a importância do setor de serviços na economia brasileira é elevada mesmo para o padrão de países emergentes, concentrando cerca de 70% do PIB e do emprego. Como este setor será o mais fortemente atingido, o impacto econômico e social será muito significativo.
Diante desse quadro, não resta dúvida de que a reação do governo deve ser rápida e de grande magnitude. Primeiro, é preciso combater os efeitos da pandemia com elevação expressiva dos gastos em saúde. No estágio atual, é muito difícil quantificar esse montante, mas ele deve ser do tamanho que for necessário para poupar o maior número possível de vidas. O discurso inicial da equipe econômica, no sentido de que seria necessário atingir um equilíbrio entre as medidas de combate à propagação do vírus e os efeitos negativos sobre a atividade econômica, era inteiramente equivocado, e felizmente parece ter sido abandonado.
Além dos esforços necessários para assegurar a proteção da saúde das pessoas, é necessário fazer todo o possível para protegê-las sob o ponto de vista econômico. Como diversos especialistas têm apontado, a melhor forma de proteger os mais vulneráveis seria transferir renda diretamente usando o Cadastro Único, que abrange cerca de 70 milhões de pessoas com renda até meio salário mínimo. Dessas, 41 milhões recebem o Bolsa Família. A ideia é usar a grande capilaridade do cadastro para atingir os mais vulneráveis de forma rápida e abrangente.
Com esse objetivo, o primeiro passo seria zerar a fila do Bolsa Família. O segundo passo seria um aumento do valor do benefício do Bolsa Família e a inclusão das pessoas que estão no Cadastro Único mas não recebem o benefício. Como uma parcela possivelmente significativa dos trabalhadores informais não está incluída no Cadastro Único, seria importante conceber formas de transferir renda para essas pessoas, possivelmente por meio de contas bancárias. Devido ao impacto fiscal dessas medidas, elas devem ter caráter temporário e focalizar o público mais vulnerável.
O pacote inicial do governo era claramente insuficiente nesse sentido, já que não contemplava os trabalhadores informais. Posteriormente, o anúncio de fazer uma transferência direta de renda para os informais durante três meses, no valor de R$ 200 por mês para cada trabalhador e montante total estimado de R$ 15 bilhões, representou um avanço no sentido de efetivamente proteger os vulneráveis, embora ainda insuficiente.
Além dos trabalhadores informais, é preciso criar mecanismos para evitar demissões em massa dos ocupados formais. Isso envolve várias medidas que já foram anunciadas ou estão em discussão, envolvendo a postergação do pagamento de obrigações, como impostos, tanto por parte de empresas como de pessoas físicas. Outra medida recentemente anunciada é a redução de jornada com diminuição proporcional dos salários, e alguma compensação por parte do governo para reduzir a perda de renda do trabalhador.
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Finalmente, é necessário um amplo conjunto de medidas para fornecer liquidez ao sistema financeiro e linhas de crédito para financiamento do capital de giro das empresas. As medidas anunciadas no início da semana pelo Conselho Monetário Nacional e, posteriormente, pelos bancos públicos, vão nessa direção.
O grande risco no momento é que uma crise aguda, mas temporária, gere tamanha disrupção do tecido econômico e social que suas consequências sejam duradouras. Por outro lado, é necessário compatibilizar a reação da política econômica com nossa frágil situação fiscal, igualmente para não gerar consequências negativas de longo prazo.
O arcabouço fiscal do país, em particular a Emenda Constitucional do Teto de Gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal, permite que o aumento de gastos necessário para enfrentar esta crise seja feito em caráter excepcional. Com certo atraso, o governo tomou a decisão correta de explorar esse caminho por meio da solicitação ao Congresso de decretação de estado de calamidade pública, ao mesmo tempo reafirmando o compromisso com o teto de gastos.
O combate aos efeitos econômicos e sociais do coronavírus vai exigir um enorme esforço de coordenação de esforços e recursos, envolvendo os três Poderes e a sociedade civil. Não existe margem para erro.
Fonte: “Blog do IBRE”, 23/03/2020