O período entreguerras virou referência frequente na análise política contemporânea. Depois da crise de 1929, o mundo se viu às voltas com uma onda de nacionalismos, protecionismos, fascismos e totalitarismos. O paralelo com o presente é irresistível. Há uma década, liberdades individuais e direitos civis recuam pelo planeta, em escala inédita desde o final da Segunda Guerra Mundial. É tentador enxergar um novo Stálin, Hitler ou Mussolini em vilões de estimação — seja Maduro ou Duterte, Orbán ou Erdogan, Putin ou Trump. Tentador e simplificador. Se é verdade que o passado traz lições e armadilhas a evitar, nem tudo se repete. Cada país, cada personagem, cada democracia tem características próprias. A melhor compreensão do mundo atual não está necessariamente nos anos 1930, nem mesmo na história ou na ciência política. Está na literatura e, como já escrevi aqui, na obra do maior dos gênios literários, William Shakespeare.
Veja também de Helio Gurovitz:
Não há vacina contra os males das redes sociais
A trilha sonora de um tempo que passou
É preciso abrir os arquivos militares
Como Shakespeare explica a política contemporânea? Eis o tema de Tyrant (Tirano), novo livro de Stephen Greenblatt, shakespeariano-mor da Universidade Harvard. “Minha mulher e meu filho, ouvindo na mesa de jantar minhas reflexões sobre a relevância inquietante de Shakespeare para a política de hoje, insistiram que eu fosse atrás do tema”, diz ele. “Foi o que fiz.” Greenblatt investiga na dramaturgia política aquilo que tanto nos amedronta: a mente dos tiranos, os mecanismos que permitem sua ascensão e o que — se algo — podemos fazer para evitá-la. Escrevendo sob a censura elisabetana, Shakespeare fez uma leitura oblíqua de sua era, mas dotada, ao mesmo tempo, de uma percepção aguda das mentiras, tramoias e ilusões que definem a política.
“A palavra ‘político’, para Shakespeare, era sinônimo de hipócrita.”
O maior de todos os tiranos de Shakespeare é o personagem-título de Ricardo III. Sua ascensão, narrada a partir da trilogia Henrique VI, deriva de um ambiente familiar ao leitor atual: uma sociedade polarizada, rachada ao meio pela Guerra das Rosas. “O objetivo é criar o caos, que preparará o palco à tomada do poder pelo tirano.” O futuro rei Ricardo designa um preposto para semear a cizânia e cevar o ressentimento entre os pobres. “Promete tornar a Inglaterra grande outra vez. Como fará isso? Ataca a educação. A elite educada traiu o povo.” Quer destruir não só os nobres, mas todos os que “leem livros”. Sua personalidade é constituída por um misto de “autoestima sem limites, desrespeito à lei, prazer em causar dor, desejo compulsivo de dominar”. “É patologicamente narcisista e soberbamente arrogante. Tem um sentido grotesco de direito adquirido, jamais duvidando de que pode fazer o que quiser. Espera lealdade absoluta, mas é incapaz de gratidão.” Para chegar ao poder, conta com todos ao redor: os ludibriados; os impotentes ou assustados; os que não acreditam que ele possa ser tão ruim; os que sabem quem ele é, mas preferem encará-lo como normal; os que simplesmente obedecem; e os mais sinistros, aqueles que julgam poder tirar proveito da tirania.
Grenblatt decifra as limitações dos tiranos noutras peças, como Rei Lear e Macbeth. “Shakespeare não acreditava que eles durassem muito. Por mais espertos que fossem, uma vez no poder se revelavam incompetentes.” Dá para evitar a tirania antes do estrago? Nem sempre. Em Júlio César, o assassinato não surte o efeito desejado. “A tentativa de evitar uma crise constitucional precipita o colapso do Estado. O próprio ato que deveria salvar a República acaba por destruí-la.” Mas não é impossível, revela outro exemplo trazido da Roma Antiga: Coriolano, trama em que entra em ação um paradoxo da democracia. “A cidade é protegida da tirania pelos tribunos, políticos de carreira que levam o povo à ação. Ignóbeis e interesseiros, semelhantes aos detestados políticos profissionais nos congressos e parlamentos democráticos, eles é que resistem ao guerreiro-valentão e insistem nos direitos dos cidadãos comuns.” Entre dois males, uma sociedade precisa saber escolher o menor.
Fonte: “Época”, 26/07/2018