“Foi mal, desculpa aí.” Mais ou menos assim, Mark Zuckerberg tentou explicar ao Congresso americano o uso ilegal dos dados de 87 milhões de usuários do Facebook pela empresa de marketing político Cambridge Analytica (CA). Não convenceu ninguém. Foi, até agora, o momento mais dramático de uma batalha que se tornará mais intensa. A disputa latente entre política e tecnologia se tornou explícita. Da utopia digital do Vale do Silício, emergiu a realidade dos monopólios corporativos, da manipulação política e do tribalismo antidemocrático. O resultado do choque com as instituições é incerto. “Nos próximos anos, ou a tecnologia destruirá a democracia e a ordem social ou a política imprimirá sua autoridade sobre o mundo digital”, escreve o jornalista britânico Jamie Bartlett no recém-lançado The people vs. Tech (O povo contra a tecnologia).
O livro de Bartlett, primeira análise de fôlego lançada depois do escândalo Facebook-CA, vai além do relato jornalístico. Traça um quadro amplo de como as grandes corporações digitais se imiscuíram em todas as esferas da vida e adquiriram poder político descomunal, sem assumir a responsabilidade correspondente. “Quanto piores e mais ricas essas empresas se tornam, mais elas gastam para parecer ‘legais’ e falam em justiça e comunidade. Não pode ser coincidência”, diz ele. “De posse dos dados de sua geladeira, carro autônomo, agenda e do Facebook, sua TV inteligente poderá disparar um anúncio relativo à criminalidade bem no momento em que você começa a sentir a angústia da fome. A promessa é transformar a política em ciência comportamental, apoiada em gatilhos e incentivos, em vez de argumentos públicos. O poder migrará daqueles com boas ideias para aqueles com dados e dinheiro.” Bartlett elenca de modo persuasivo ameaças da tecnologia a seis pilares do regime democrático:
Vigilância — A coleta de dados sobre tudo e sobre todos, com fins publicitários, reduz o espaço para livre escolha e autonomia individual;
Tribalismo — O incentivo à lealdade grupal, fundada na fé em mitos sem amparo na realidade, deixa o cidadão à deriva, sem referencial confiável, refém de discursos totalitários;
Individualismo — O uso de dados para atingir eleitores aniquila o debate público, incentiva políticos rasos e demagógicos, amplia o poder nas mãos de quem tem mais dinheiro e mais dados;
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Desigualdade — A disseminação da inteligência artificial destrói ocupações e reduz a pó a classe média, esteio de todos os regimes democráticos;
Monopólio — A natureza dos negócios em rede favorece monopólios, concentra riqueza e dados, ameaça imprensa e sociedade civil, estabelece padrões culturais e ideológicos uniformes;
Anarquia — Criptomoedas e comunicação cifrada, reações naturais à vigilância, tornam o crime mais barato e atraente, ao mesmo tempo que enfraquecem o Estado e encarecem a segurança pública.
Embora apresente 20 recomendações para evitar o pior cenário, a conclusão de Bartlett é desalentadora. “O iPhone e os navegadores que usamos espalharam a ideologia californiana pelo mundo, infectando a todos nós com a ideia sedutora de que ‘disrupção’ é liberação, individualismo total é ‘empoderamento’ e bugigangas equivalem a progresso”, escreve.
A democracia, diz ele, não desaparece de repente, num golpe de Estado ou revolução.
A involução autoritária é gradual, imperceptível.
Autocratas populistas eleitos, como Chávez, Erdogan ou Putin, minam as instituições paulatinamente, até tornar-se monarcas com a anuência das massas. A tecnologia digital, diz Bartlett, contribui ao transferir poder do indivíduo às corporações ou ao Estado. “A não ser que mudemos de curso, a democracia será varrida pela revolução digital e se unirá a feudalismo, monarquia absoluta e comunismo como apenas mais um experimento político que funcionou por um tempo, mas foi incapaz de se adaptar quando a tecnologia evoluiu — e desapareceu em silêncio.”
Fonte: “Época”, 14/04/2018