Mais do que um preceito legal, a autonomia das universidades é uma condição necessária para que cumpram o papel que a sociedade espera delas, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais competentes. Assim como não são os pacientes que dizem aos médicos como devem ser tratados, não são os governos (ou os estudantes) que podem dizer às universidades o que e como devem pesquisar e ensinar, porque são os professores e os pesquisadores, e não os governantes ou os estudantes, que trabalham na fronteira do conhecimento e dos estudos.
Isso, claro, no mundo ideal.
No mundo real, a autonomia depende de uma relação de confiança entre as universidades e a sociedade, que, quando existe, reconhece e valoriza a autoridade intelectual dos professores e contribui com seu dinheiro. No passado, quando as universidades eram pequenas e professores e alunos provinham das mesmas elites dos governantes, essa relação de confiança se estabelecia de forma quase automática. No mundo de hoje, com universidades gigantescas, grandes orçamentos e professores e alunos provenientes de diferentes ambientes e condições sociais, essa relação de confiança fica abalada, fazendo com que movimentos políticos pressionem e governos desenvolvam sistemas complicados e nem sempre bem-sucedidos de avaliação do desempenho das universidades e restrições no acesso a recursos e no seu uso.
Essa desconfiança tem suas razões, porque o exercício da autonomia pode facilmente se converter ou se confundir com a mera defesa de interesses e privilégios corporativos. Mas quando os pacientes ou o dono do hospital começam a dizer aos médicos o que fazer e políticos, burocratas e movimentos sociais a mandar nas universidades, nem a medicina nem a educação conseguem funcionar direito. A agressividade recente do ministro da Educação contra as universidades federais é só um exemplo extremo dessa perda de confiança, que precisa ser recuperada.
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Essa recuperação requer um trabalho permanente de ambas as partes. Os sistemas de avaliação externa vieram para ficar, mesmo que, como no Brasil, custem muito e deixem de avaliar o que mais interessa. Apesar do que diz a Constituição, as universidades federais brasileiras nunca foram autônomas, porque não têm controle sobre seus recursos, rigidamente administrados pelo governo central. A quase totalidade se vai em salários e aposentadorias, e os demais custos – custeio, investimentos, criação de cargos – devem ser negociados um a um pelos reitores, que precisam mostrar lealdade aos ministros ou recorrer a pressões políticas para sobreviver.
As universidades paulistas têm mais autonomia para administrar seus recursos. Mas todas estão submetidas às mesmas regras do serviço público e sujeitas a permanente assédio de órgãos de controle ou grupos políticos quando buscam ampliar sua liberdade de ação, sobretudo na área financeira.
Para recuperar sua legitimidade, as universidades públicas precisam se preocupar mais seriamente com a qualidade e a relevância do que produzem, mostrar melhor o que fazem e assumir a responsabilidade pela administração de seus recursos, saindo do colo confortável, mas sufocante, do serviço público. O formato das organizações sociais, adotado com sucesso pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada e pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, mostra como fazê-lo. É preciso diversificar as fontes de recursos, inclusive pela cobrança de matrículas dos alunos, por um mecanismo que não discrimine os mais pobres, como o financiamento vinculado à renda futura adotado na Austrália e outros países; e entrar definitivamente no mercado de talentos, negociando contratos flexíveis e salários competitivos para diferentes setores e áreas de conhecimento.
É preciso também adquirir mais autonomia em relação aos grupos de interesse internos, estabelecendo sistemas de governança com forte participação externa.
O governo, em vez de alternar entre aceitar tudo e pagar a conta, para garantir apoio ou com medo dos protestos, ou partir para o ataque, precisa desenvolver um sistema mais adequado de avaliação e associar o financiamento público ao desempenho efetivo das instituições, mediante contratos de gestão, e não seus custos históricos. Um bom ponto de partida seria levar a sério as recomendações do relatório da A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicado no final de 2018, sobre como reformular o sistema brasileiro de avaliação da educação superior. Ao invés de avaliar cada curso, aumentar a responsabilidade das instituições sobre o que fazem; deixar de lado o Enade, com seus rankings sem padrões de qualidade e os índices cabalísticos que ninguém entende, e introduzir dados objetivos sobre desistência, empregabilidade e custos; e criar uma agência de avaliação independente, fora do Ministério da Educação.
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As instituições de educação superior e de pesquisa, públicas e privadas, com todos os seus problemas, são também um patrimônio inestimável, construído ao longo de décadas, habitadas por pessoas competentes, motivadas e comprometidas com o trabalho que fazem, que precisam ser tratadas com carinho. No final dos anos 1970, o israelense Joseph Ben-David, famoso historiador e sociólogo da ciência, veio ao Brasil a convite de José Pelúcio Ferreira, então presidente da Finep, envolvida com o reerguimento da pesquisa e da tecnologia brasileiras, abaladas com os expurgos do regime militar. Perguntado sobre a dificuldade de construir instituições e a facilidade com que elas podem ser destruídas, respondeu que, infelizmente, contra comissários e coronéis truculentos não há muito que se possa fazer. É necessário evitar que isso aconteça novamente.
Fonte: “Estadão”, 10/05/2019