Por Pedro Ferreira e Renato Fragelli
Em artigo recente no Valor – “A Ameaça ao Setor de Bens de Capital” – Luciano Coutinho faz uma apaixonada defesa da manutenção da proteção tarifária ao setor de bens de capital. Segundo ele, grupos de dentro do governo, “apoiados por organismos internacionais”, estariam propondo redução unilateral das tarifas do setor, para 4%. Segundo o autor, o setor tem alto efeito multiplicador sobre a economia – que os “economistas liberais desconheceriam” -, além da proximidade e interação entre produtores locais e usuários formar clusters de inovação essenciais para desenvolvimento de novos produtos e processos aceleradores dos ganhos de produtividade.
O fim da proteção nos níveis atuais atingiria o setor, que já possui desvantagens sistêmicas (valorização cambial, altas taxas de juros, má infraestrutura, etc), em um momento de recuperação.
O artigo possui graves erros factuais, o que prejudica, senão invalida, seus argumentos. Três deles chamam mais a atenção. O primeiro é a suposta falta de “fundamentação séria” da tese de que a remoção da proteção aumentaria a produtividade do setor. Note-se, entretanto, que o período de mais rápido crescimento da produtividade industrial brasileira provavelmente tenha sido aquele que se seguiu à liberalização comercial do início dos anos 1990. Naquela ocasião, tarifas nominais e barreiras não tarifárias foram agressivamente reduzidas. Logo em seguida, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho da indústria saltou de menos 0,28% ao ano, no período 1985-90 pré liberalização, para 8% ao ano, entre 1991 e 1997. Em alguns setores como Máquinas e Equipamentos a produtividade do trabalho quase triplicou entre 1991 e 2001.
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Existe sólida evidência estatística, e um enorme número de publicações, corroborando de forma rigorosa a relação acima – Ferreira e Rossi (PPE (1999) e IER (2003), Schor (JDE, 2004) e Muendler (2002). Em todos esses artigos, com diferentes metodologias e bases de dados, estima-se uma relação significativa e de magnitude relevante entre a redução da proteção comercial e o crescimento da produtividade industrial no Brasil. Não parece haver polêmica ou dúvida, mas sim um fato estabelecido.
No cenário global, artigo recente de Estevadeordal e Taylor (RESTAT 2013) mostra que países que liberalizaram suas economias nos anos 1990 cresceram significativamente mais rápido do que aqueles que não liberalizaram. E o efeito é mais forte no que se refere à redução de tarifas de bens intermediários e bens de capital, exatamente a preocupação de Coutinho. A lista é longa e, como dito acima, a relação estabelecida.
O segundo erro factual é a afirmação de que a proteção efetiva ao setor seria negativa, dado que as tarifas nominais do setor seriam baixas e as de seus insumos altas. Nada mais distante da realidade. Estudo sob coordenação de Marta Castilho (publicado em 2015 pelo IEDI e Fiesp) estima que as proteções efetivas aos setores de Máquinas, Aparelhos e Materiais Elétricos, de Máquinas e Equipamentos e de Material Eletrônico e Equipamentos de Comunicação, em 2014, eram respectivamente, de 28%, 18% e 33%. As tarifas nominais são também altas, em torno de 12%. Assim, ao contrário do afirmado, e em oposição ao que se observa na grande maioria dos países, a proteção a esses setores no Brasil é bastante elevada.
Finalmente, os “mais de 2 mil ex-tarifários” são citados como evidência de facilidade às importações e baixas barreiras. O argumento não se aplica, uma vez que essas exceções só são aprovadas para importações de máquinas e equipamentos sem similares, e os processos ainda passam pela análise da Abimaq. Isto é, não há qualquer impacto concorrencial sobre a produção doméstica.
Em suma: o setor de bens de capitais no Brasil é muito protegido e, dada a evidência estatística, isso certamente prejudica a evolução da produtividade da economia brasileira. Como esses bens são insumos de muitos setores, o impacto da proteção é muito maior que o impacto direto, pois há um efeito de difusão por todas as cadeias produtivas da economia. O efeito multiplicador – que “alguns” economistas liberais conhecem bem – vai exatamente contra o argumento de Coutinho: a proteção ao setor de bens de capital prejudica todos os setores que utilizam como insumos seus bens, depois para aqueles que compram insumos desses últimos, e assim por diante. Distorções aqui são muito mais prejudiciais à economia do que tarifas sobre bens de consumo.
Outro argumento que parece contraditório vem do fato que os clusters de inovação, decorrentes da proximidade entre produtores e compradores, na verdade constituem um poder de monopólio dos primeiros, dando-lhes uma enorme vantagem competitiva em relação à produção internacional – com menor acesso aos consumidores – e diminuindo a necessidade de proteção. Argumentos sobre valorização cambial e alta taxa de juros não se sustentam também, já que nos últimos anos o país experimentou todo tipo de regime cambial e manipulações da taxa de juros, sem efeitos relevantes. Ademais, o setor foi muito beneficiado por subsídios e linhas de crédito com juros abaixo do mercado. Isso, potencialmente, deveria ter aumentado a eficiência do setor e sua capacidade de competir.
O Brasil já passou por vários experimentos protecionistas que fracassaram retumbantemente. O professor Luciano Coutinho participou ativamente de dois deles. O primeiro foi a Lei da Informática, que fechou completamente o setor a produtos e firmas estrangeiras. Não poderia dar certo e não deu, atrasando o avanço tecnológico do país.
O segundo foi a Nova Matriz Econômica, que impôs inúmeras barreiras tarifárias e não tarifárias – requerimentos de conteúdos locais, por exemplo – a insumos e máquinas produzidos fora do Brasil. Além de uma crise e recessão sem precedentes, o experimento não legou estaleiros ou empresas com grande capacidade de competição internacional. Causa surpresa que se defenda, uma vez mais, estratégias semelhantes, apesar de toda evidência contrária.
Fonte: “Valor Econômico”, 18/04/2018