O governo que herdar a atual crise de desconfiança terá dificuldade para convencer a população dos méritos de seus ajustes.
“As únicas estatísticas em que você pode confiar são aquelas que você mesmo falsificou.” Winston Churchill
Para abusar de um clichê, há uma espantosa crise de confiança não importa para onde se olhe. No Brasil, ela está firmemente enraizada na política, nos rumos da economia, nas perspectivas para o País após as eleições de outubro. Não à toa serão, provavelmente, os votos brancos e nulos os grandes vitoriosos nas urnas, como mostram sistematicamente as pesquisas de opinião. Mas, mesmo que você seja um cínico inveterado, adepto ferrenho das leis que governam a estupidez humana elaboradas pelo historiador Carlo Cipolla – quem acompanha o que escrevo há algum tempo sabe que Cipolla é meu compasso – cabe analisar as tendências da desconfiança no Brasil, e o que isso pode significar para a política econômica.
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O mais recente relatório da OCDE sobre a América Latina traz interessante análise sobre como os contribuintes enxergam a estrutura de impostos na região e mostra que latino-americanos estão entre os mais propensos a evadir impostos e a achar tal postura plenamente justificável. Pesquisa baseada nos dados compilados pelo Latinobarômetro revela que na América Latina, 20% da população acham perfeitamente justificável não pagar tributos, enquanto na Ásia e na África apenas 10% da população descrevem a mesma postura. O relatório discute vários artigos acadêmicos que tentam encontrar razões para a aversão latinoamericana aos impostos, mas os motivos citados são pouco convincentes. Afinal, fragilidades institucionais e governos cambaleantes abundam nessas e em outras partes do planeta. Curiosa, resolvi ir direto à fonte e analisar os dados para o Brasil.
No Brasil, a aversão ao pagamento de impostos evoluiu assim: em 1998, 65% da população achava justificável nada pagar aos cofres públicos, cifra que subiu para 77% em 2003. A partir desse ano, a aversão dos brasileiros à tributação diminuiu, alcançando o nível mais baixo às vésperas da crise financeira, 33% em 2008. A tendência novamente se inverteu em 2010, alcançando 61% em 2011. Em 2016 – não há dados disponíveis para 2017 – cerca da metade da população brasileira achava que não havia justificativa sequer para pagar impostos, e que se fosse possível fazê-lo sem cair na malha fina da Receita Federal ou ser penalizado de outra forma, o melhor era evadir. Por que isso deveria interessar nossos futuros governantes? Há uma pluralidade de motivos. Primeiramente porque, dada a situação fiscal periclitante que Temer deixará como legado, é difícil imaginar qualquer consolidação fiscal sem aumento dos impostos, que o povo se recusa a pagar. Em segundo lugar porque há quem acredite que a legitimidade está em taxar os mais ricos, em reduzir a regressividade da estrutura tributária brasileira com impostos sobre heranças e ideias afins. A regressividade é problema grave que perpetua nossas desigualdades. Contudo, acreditar que a legitimidade do Estado vem à reboque de profunda mudança na estrutura tributária é um tanto ingênuo – o que não retira o mérito de qualquer mudança, que fique claro.
Recusar-se a dar dinheiro para o Estado não é questão ideológica, mas espécie de instinto de sobrevivência
Análise mais profunda dos dados do Latinobarômetro mostra que o repúdio ao pagamento de impostos não está relacionado a qualquer noção de injustiça social. Na verdade, nos anos pré-eleitorais de 2013 e 2017, a justiça social foi apontada como um dos mais graves problemas do País apenas por cerca de somente 2% da população brasileira, o que não deixa de ser surpreendente dadas as nossas imensas disparidades. Em 2017, os problemas mais graves do País foram a corrupção para 31% da população, e a situação política para 23%. Em 2013, apenas 9% da população apontava a corrupção como um grave problema, e míseros 3% assustavam-se com a situação política. Entre uma data e outra passaram-se tão somente quatro anos.
Eis, portanto, o quadro desolador. O governo que herdar a crise de desconfiança deixada pelos anos de petismo e de pemedebismo – um p a menos não muda o legado – terá imensas dificuldades para convencer a população dos méritos de suas propostas de ajustes e reformas pois o povo não acredita no Estado. A descrença é tanta que a possibilidade de não financiá-lo com tostão sequer, ainda que seja para distribuir melhor a renda, é a fantasia e o desejo de muitos. Recusar-se a dar dinheiro para o Estado não é questão ideológica, mas espécie de instinto de sobrevivência. Respondam a isso, candidatos.
Fonte: “Estadão”, 18/04/2018