Por uma coincidência, o lançamento do terceiro volume dos Diários da Presidência de Fernando Henrique Cardoso deu-se este ano mais ou menos concomitantemente com o agravamento da crise política que resultou da divulgação das famosas “gravações do Joesley”. Embora a situação atual tenha particularidades específicas, foi interessante ler o raciocínio do ex-presidente, manifestado em gravações feitas há quase 20 anos – o terceiro volume refere-se ao período 1999-2000 –, ao mesmo que o País acompanhava os novos lances do nosso intricado xadrez político.
Selecionei para o leitor algumas passagens do livro, especialmente ilustrativas por sua atualidade. A primeira é uma reflexão particularmente interessante acerca das cobranças feitas a quem está no comando: “Quando o presidente entra na ação política, toda a imprensa reclama que eu estou perdendo tempo com os parlamentares, na barganha, o povo não gosta. Quando não entro, o governo está isolado, não tem força, e efetivamente o Congresso começa a dar cabeçadas (…) É uma situação que este presidencialismo nos traz. É muito difícil governar, porque o presidente é chefe de Estado, chefe de governo e chefe de partido. Cobram a ação do presidente e cobram a partir de ângulos diferentes” (páginas 164 e 165).
Um pequeno parêntese para registrar o comentário de que, “em 12 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto de lei proposto pelo Senador Sérgio Machado para proibir coligações partidárias em eleições proporcionais” (página 186). Em 1999! A ideia de que no Brasil as coisas se repetem dia após dia, como no filme Feitiço do Tempo, em que Bill Murray é condenado a reviver o mesmo dia indefinidamente, chega a dar desespero.
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Repare o leitor como a frase a seguir parece ter sido escrita ontem: “Vou informar aos partidos que Ibama, Incra, Funai passam a ser órgãos que não podem ser discutidos em termos políticos de forma alguma. Dir-se-á por que não fiz isso antes. Porque eu não tinha força, não tinha condições para fazer. As pessoas não sabem o que é a realidade política, mas é assim (…) Repito a velha toada. É muito difícil instituir uma liderança democrática. Todos querem o autoritarismo ou o popularismo. São as duas formas de exercício da autoridade sancionadas positivamente entre nós (…) Nós estamos fazendo outra coisa; estamos afirmando uma autoridade legítima, democrática, que convence ou tenta convencer, que articula, que só no limite impõe” (página 214). E ainda sobre o mesmo assunto, poucas páginas depois: “Parte dos políticos quer mais ou menos a mesma coisa, poder, e se possível algumas vantagens até mesmo de ordem material, sempre sob o pretexto, e às vezes com a convicção, de que é um mecanismo para garantir as eleições futuras. Eu não concordo, acho que dinheiro de eleição é nas eleições, e não antes delas. Enfim, esse é o pano de fundo da briga no Brasil” (página 217).
Por fim, a conclusão amarga, com certa dose de reconhecimento resignado. “Os aliados são sempre relativíssimos: quando estou bem com a população, eles são fiéis; quando a população se afasta de mim, ficam tentando ir para uma posição de independência crítica, esse é o jogo tradicional no Brasil (…) E ninguém tem uma política alternativa, eles não me propõem, por exemplo, vamos mudar de qualquer maneira a taxa de juros, vamos fazer uma política industrial desse ou daquele tipo, nada concreto; são só coisas vagas” (página 276).
Relembro, em benefício do leitor, essas reflexões de Fernando Henrique Cardoso porque elas são fundamentais quando nos aproximamos do processo eleitoral de 2018. Virou moda dizer que “o eleitor quer o novo”, que estas serão eleições que marcarão uma ruptura, etc. Além disso, o ambiente internacional é propício à procura de outsiders. A vitória do Brexit na Grã-Bretanha, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e episódios tão díspares como a escolha pelo eleitorado de figuras como o atual presidente filipino ou o colapso dos partidos tradicionais na França têm criado uma expectativa grande de renovação.
É conveniente, porém, moderar um pouco as expectativas. Primeiro, porque após votar o eleitor vai para sua casa e deixa o governante na solidão do poder, que costuma ser cruel com quem não sabe exercê-lo. Segundo, porque especificamente no Brasil tudo indica que as dificuldades para montar uma coalizão governante em 2019 serão maiores do que as atuais: PMDB e PT provavelmente terão menos deputados do que hoje e partidos pequenos, como o PSOL ou o Novo, elegerão um número importante de parlamentares, o que significa que será preciso somar mais partidos do que hoje para alcançar os 308 votos na Câmara de Deputados necessários para mudar a Constituição. E, terceiro, porque, ao contrário do que acontece na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, onde mesmo com impasses o país continua sua vida normal, se o Congresso não funcionar em 2019 e não aprovar as reformas de que o País precisa, poderemos ter uma crise séria.
O presidente da República a ser eleito daqui a um ano poderá ser até, eventualmente, uma novidade. O Congresso, contudo, dificilmente o será. Se quem for eleito para comandar o País não souber lidar com o Parlamento, não é difícil imaginar o que acontecerá. Pensemos algo mais ou menos trivial: uma lei aumentando o salário mínimo em 10%, com todas as suas consequências fiscais. Nada mais simpático para ser aprovado por um Congresso em pé de guerra com o Executivo. Daí ao fim do teto de gastos será só um passo e para a pressão sobre o dólar e os preços, meio. De “pauta-bomba” em “pauta-bomba”, começaremos a ouvir generais dizendo que há que “fazer o que é preciso” e parlamentares falando em “impeachment”.
Por isso, saber lidar com o Congresso será um requisito-chave para quem for presidente da República em 2019.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 07/11/2017.
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