Duas pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (o CPDOC), Dulce Pandolfi e Luciana Heymann, foram demitidas, e jaz em suspenso a demissão de Verena Alberti. Todas são autoras de obras importantes.
Se você pensa em pesquisar sua família, cidade ou país — virando um curioso estrangeiro de si mesmo, dedicando-se a reler jornais e arquivos, esquecido do preço a pagar por investigar assuntos tabus como o patrocinado político, trilhando caminhos desconhecidos para tudo reunir num relato muito além das banalidades — deveria consultar os trabalhos dessas profissionais.
Assim fazendo, você vai entender por que a comunidade acadêmica alarmou-se e tem se manifestado em defesa dessas colegas, conforme noticiou o colunista Ancelmo Gois no GLOBO de 2 de fevereiro.
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Quando iniciei meus estudos pós-graduados em Harvard, em 1963-64, e voltei a Niterói para ensinar Antropologia como assistente do professor Luís de Castro Faria, na então Faculdade Fluminense de Filosofia, ele mencionava o projeto da jovem pesquisadora Celina Vargas do Amaral Peixoto de criar um centro de história oral.
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Voltei a Harvard em 1968 e, quando retomei meus cursos no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na década de 70 (recebendo chumbo grosso de todos os lados), observei a instalação quase simultânea de programas de política e de documentação de história oral impulsionados pela Fundação Ford. O de estudos políticos — graças aos esforços de Candido Mendes — no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj); enquanto o CPDOC era abrigado na Fundação Getulio Vargas.
Que os leitores me permitam recordar com as imprecisões do coração esse momento para ressaltar que foi no azedo caldo do regime militar — cujo golpe em 1964 eu, para bem ou mal de minha pessoa e dos meus, não testemunhei ao vivo pelo rádio em Cambridge, Massachusetts — que as chamadas Ciências Sociais iniciaram a sua maioridade no Rio de Janeiro e no Brasil, emparelhando com a Universidade de São Paulo.
Não deixa de ser uma amarga ironia que o CPDOC tenha florescido num regime marcado pela agressão e pela censura e hoje — quando se faz um enorme esforço para consolidar uma democracia que seja mais do que um nome engolfado pela política como captura de riqueza e poder partidário — haja preocupantes sintomas de desmontagem de um núcleo de tamanha importância.
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Vale indagar, cordial e brasileiramente, o motor dessas demissões e o risco que elas representam não apenas para a “cultura”, mas para o “espírito” brasileiro. Espírito no sentido da mais alta compreensão de nossas instituições, tal como elas foram vividas ou administradas pelos seus principais protagonistas. A voz direta de certos políticos numa “história oral” revela profundidades abafadas pelos estudos interpretativos. Tal modo de ler o Brasil é, sem dúvida, uma contribuição notável e insubstituível do CPDOC. A história oral é crítica numa sociedade na qual são raros os relatos escritos e os diários.
Falamos muito em educação e cultura, mas nos esquecemos do longo compasso requerido por cada uma dessas aéreas. O Programa de Antropologia Social do Museu Nacional — do qual fui professor e, numa fase crítica, coordenador e logrei institucionalizá-lo — é hoje uma referência internacional. Qual foi o segredo? Apoio institucional e investimento em inovadoras linhas de pesquisa.
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Um fantasma ronda a universidade brasileira. É a assombração da produtividade transformada na ideologia do “produtivismo”. Uma gradação quantitativa dos programas modelada na Matemática e nas Ciências Físicas e Naturais. A quantidade e a avaliação com pitadas partidárias inibem o acesso à qualidade. Importa saber quantos livros Marx publicou? Ou em que revistas qualificadas Tocqueville e Freud poderiam ser lidos? Não se deve transformar a avaliação meritocrática num formalismo hierárquico, abandonando as biografias dos pesquisadores — vidas que são, em larga medida, os seus laboratórios.
Estou convencido de que o estudo da sociedade é um meio complexo e árduo de autoconhecimento. As Ciências Sociais podem e devem ser avaliadas, mas é muito difícil fazê-lo por meio de um padrão fechado. Pois o melhor que delas nasceu foi um pensamento libertador, crítico de costumes e valores estabelecidos. Em 1979, quando levei a sério o carnaval, estudando-o como um ritual, fui admoestado por investigar um assunto, imagine, apolítico. Hoje, depois de ver tanta água correr debaixo da ponte, tenho idade e credenciais suficientes para saber que as Ciências Sociais são irmãs siamesas da democracia E a democracia é o regime da paciência e da compreensão do outro.
Mesmo quando ele nos demoniza ou demite…
Fonte: “O Globo”, 07/02/2018