O contato entre sociedades com culturas diferenciadas produz um processo complexo. Há o lado terrível da dominação causado por diferenças tecnológicas, mas uma dimensão importante ocorre implicitamente. Refiro-me, invocando o que aprendi com Darcy Ribeiro, ao plano biológico, responsável invisível e perturbador por contaminação porque o povo que se julga superior além dos seus navios, canhões e missionários carrega germes desconhecidos do povo contatado.
Muitas dessas sociedades foram extintas no processo irônico de sua “civilização”.
Temos hoje — debaixo da égide de um supercapitalismo global — uma imensa comunicabilidade entre países, culturas e sociedades, e o resultado é uma formidável contaminação. Uma inesperada pandemia, a despeito de todos os nossos avanços científicos.
Como um hóspede não convidado, o coronavírus repete outros surtos mortais que foram uma tática para dizimar populações “selvagens”. É o feitiço contra o feiticeiro? Não sei. Apenas remarco que há sempre o inesperado.
Hoje, o mortal agente patológico não é um poder colonial. É muito mais complicado porque um vírus não tem ideologia ou propósito: ele atinge países ricos e pobres; e culturas com os costumes mais diferenciados. Num nível crítico, ele desafia a onipotência moderna. Se tudo sabemos, como não fomos capazes de prever algo tão trivial como uma mera gripe?
Uma gripe cujo ponto-chave para cura é o isolamento, o que, por outro lado, obriga a ver costumes com um problema. Como mudar hábitos enraizados e automáticos, se a quarentena e o controle do contato físico são, em muitos lugares, sinônimos de uma sofrida solidão? Como evitar estender a mão quando “não a mão” é um ato de desprezo e uma ofensa mesmo em sociedades nas quais os contatos corporais não são costumeiros?
Aliás, na América dos livres e solitários o presidente Trump recusou rudemente “apertar a mão” de Nancy Pelosi, líder dos democratas, em pleno Congresso Nacional.
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O gesto de Trump é um exemplo acabado do que nós, brasileiros, chamamos de “desfeita”ou “má-educação”. Fosse aqui, tal ato resultaria num oficial “bate-boca”. Lá houve um controle completo por parte da ofendida (um valor da cultura americana) e, como resposta, o seu gesto recíproco de, em largos gestos, rasgar (algo impensável no Brasil) o discurso presidencial…
Aqui, fizemos a independência com um grito que afasta e liga, pois mantivemos tanto a realeza quanto a escravidão. O “bate-boca” constrói laços. Ele faz e qualifica pessoas.
Descobrimos as doenças transmissíveis, mas até hoje não vemos claramente como somos seres da contaminação. Contaminamos por palavras e pelos gestos, com beijos ou vírus, pois o que nos torna humanos — nem sempre “sapiens”— é a necessidade vital de nos comunicarmos uns com os outros.
Comunicar é a chave do humano. Seja para trocar palavras — quando damos um “bom dia!” ou um “vá pro o inferno!”ou um “fodase” —, a palavra da moda; seja para trocar dinheiro por objetos naquilo que os economistas chamam significativamente de “bens”. Ou quando contratamos serviços, pois não há hoje no mundo (exceto em coletividades tribais) quem possa ser caçador, pescador, agricultor e compadre ao mesmo tempo!
No Brasil, fazemos como o Cristo Redentor: abrimos os braços para quem nos visita. Abraçar e pegar são atos constitutivos das nossas vidas. Quando rompemos, porém, empurramos. Ficamos “longe”.
Neste conjunto cultural, é obvio que o isolamento não é somente uma questão de prevenção. É um problema social e psicológico profundo quando uma doença obriga a realizar o contrário do que somos e procedemos.
Não deve ser por acaso que na Espanha e na Itália haja virulência. São povos que se abraçam e beijam a cada encontro. São sociedades relacionais como a nossa. Nelas, as relações importam tanto quanto nossas individualidades.
O vírus obriga a disciplinar manifestações “naturais”. Convenhamos que essa aparição dos hábitos costumeiros como um problema não é pacífica. Contra o vírus não há lei ou polícia. Há a necessidade de uma reconsideração das formas de vida o que, como meu filho biólogo indicou, é um programa contrário a hábitos queridos e realizados — como tudo o que é cultural —sem pensar.
Deus nos ajude quando o presidente diz que isso é uma fantasia.
Fonte: “O Globo”, 18/3/2020