“Uelcome to Russia.” Com tais palavras em inglês, gravadas num vídeo de boas vindas, Vladimir Putin abriu as portas de seu país aos turistas que chegam para a Copa do Mundo que começa hoje. No Congresso da Fifa que escolheu ontem México, Estados Unidos e Canadá como sedes da Copa de 2026, Putin ampliou sua mensagem:
– Gostaria de enfatizar que a Fifa está comprometida com o princípio de manter a política fora do esporte. A Rússia sempre aderiu a tais abordagens e almeja a cooperação mais estreita com qualquer um que esteja determinado a desenvolver e aprimorar um início criativo aos esportes e a seus ilimitados potenciais humanísticos.
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Na novilíngua de Putin, em que as palavras significam exatamente seu oposto, o sentido da declaração pode ser traduzido mais ou menos da seguinte forma: “Nenhuma outra Copa jamais esteve tão contaminada pela política como esta, mas deixemos isso de lado para embelezar a imagem que tentaremos apresentar ao mundo”. Os comunistas podem ter saído do poder há quase três décadas, mas o controle do Estado russo sobre a economia e a informação não mudou.
A Rússia aproveita a oportunidade para afastar da audiência global os espectros do escândalo do doping na Olimpíada de Sochi, dos vândalos que barbarizaram a final da Copa da Europa de 2016 em Marselha, dos hackers intervindo em eleições mundo afora, do apoio às armas químicas de Bashar Assad na Síria, da anexação da Crimeia, do envenenamento do ex-espião Sergei Skripal e sua filha em Londres (não foi o primeiro…), dos assassinatos de jornalistas, da tentativa de sufocar a oposição e de todo o halo de corrupção e arbitrariedade que sempre cercou Putin.
Até agora, a estratégia tem funcionado. Apesar de o Reino Unido ter anunciado que não enviaria autoridades ao evento e de Estados Unidos e União Europeia terem imposto novas sanções e expulsado mais de 100 diplomatas russos, apenas a Islândia – que disputa sua primeira Copa – aderiu ao boicote.
A Copa da Rússia segue a cartilha de corrupção e obras faraônicas da Olimpíada de Sochi em 2014, a mais cara de todos os tempos, ao custo superior a US$ 50 bilhões (US$ 22 bilhões sem contar as obras de infra-estrutura). Embora os números oficiais para os gastos na Copa russa estejam perto de US$ 12 bilhões, o total não ficará aquém de US$ 15 bilhões, ou mesmo US$ 20 bilhões, segundo estimativas mais realistas. O dinheiro foi usado para construir sete novos estádios e reformar outros cinco nas onze cidades-sede, além de expandir a rede de ferrovias, aeroportos, estradas e hoteis.
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É evidente que tudo isso deixará um legado, avaliado pelos organizadores na soma inverossímil de US$ 30,8 bilhões até 2023. Basta olhar para o resultado da Copa do Brasil para entender por quê. Aqui, o investimento em infraestrutura, contaminado pela corrupção, ficou 36% aquém dos R$ 24 bilhões planejados (a maior lacuna, nas obras destinadas a aprimorar a mobilidade urbana).
Na Rússia, a situação é ainda mais escandalosa. Oito dos onze aeroportos nas sedes dos jogos pertencem a empresas de oligarcas que sofreram sanções dos Estados Unidos por conexões com Putin. Também foram atingidos por sanções empreiteiros envolvidos nas obras dos estádios em São Petersburgo, Moscou, Kaliningrado, Nijni Novgorod, Iekaterimburgo, Volgogrado e Rostov. As sanções mais notáveis recaem sobre:
– Gazprom: patrocinadora oficial da Copa e financiadora de parte dos US$ 1,5 bilhões usados para erguer o estádio em São Petersburgo;
– Grupo Avia: dono do aeroporto local de São Petersburgo;
– IFD Kapital: grupo que financiou a reconstrução do estádio Spartak em Moscou
– Andrey Skoch: sócio do aeroporto Vnukovo em Moscou
– Arkady Rotenberg: sócio do aeroporto internacional de Sheremetyevo em Moscou
– Gennady Timchenko: dono do grupo Stroytransgaz, que ergueu os estádios de Nijni Novgorod e Volgogrado;
– Viktor Vekselberg: controlador da Renova, dona de aeroportos em quatro sedes (Iekaterimburgo, Nijni Novgorod, Rostov e Samara);
– Oleg Deripaska: controlador do aeroporto de Sochi e presença de destaque nos escândalos que envolvem as relações entre os russos e a campanha presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos.
A exemplo da Olimpíada de Sochi, não é difícil escavar escândalos de corrupção e condições trabalhistas precárias nas obras da Copa. A Fifa apurou de modo insatisfatório as denúncias relativas à compra de votos, mas as investigações nem arranharam a superfície da relação íntima que liga o regime de Putin aos oligarcas responsáveis pelas obras.
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Só o estádio Krestovsky, em São Petersburgo, estourou o prazo em oito anos e o orçamento inicial em 540%. O vice-governador local foi acusado de receber propinas de US$ 351 mil. A Human Rights Watch documentou a morte de 17 operários em obras da Copa, a maior parte norte-coreanos.
Outra questão levantada por Sochi foi o doping em larga escala, patrocinado pelo governo para conquistar medalhas. Numa Copa do Mundo, a corrupção nem precisa envolver esquemas sofisticados para fraudar resultados químicos. Basta a tática conhecida de todos aqueles que tenham visto o jogo Peru e Argentina na Copa de 1978. Comprar jogadores ou juízes é bem mais simples.
É verdade que, pela primeira vez, a Copa do Mundo usará tecnologia digital para tentar coibir os erros mais escandalosos da arbitragem. Dado o retrospecto, porém, fica difícil acreditar que não haverá tentativas de todo tipo para levar a seleção russa às quartas ou semifinais.
O mesmo relatório do banco Goldman Sachs que dá o Brasil como favorito para vencer a Copa afirma que as probabilidades de a Rússia chegar às quartas e semis são, respectivamente, de 6,3% e 2,3%. Erraram feio na Copa passada. Nesta, esqueceram de considerar em suas contas apenas um fator cuja influência poderá ser decisiva: Vladimir Putin.
Fonte: “G1”, 14/06/2018