A corrupção política é um dos problemas mais severos e complexos enfrentados por novas e velhas democracias. No fundamental, ela envolve o abuso do poder público para qualquer tipo de benefício privado, inclusive vantagens para partidos de governo em detrimento da sua oposição. Ela frauda, portanto, o princípio de igualdade política inerente à democracia, pois os seus protagonistas podem obter ou manter poder e benefícios políticos desproporcionais aos que alcançariam através de modos legítimos e legais de competir politicamente. Ao mesmo tempo, ela distorce a dimensão republicana da democracia porque faz as políticas públicas resultarem não do debate e da disputa pública entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores que favorecem interesses espúrios.
A conduta criminosa de líderes e de partidos políticos compromete sobremaneira a percepção das pessoas sobre as vantagens da democracia em comparação com as suas alternativas, pois ao fazer crer que ela é parte da rotina usual do regime democrático, da mesma forma que do autoritário, ela desqualifica os mecanismos adotados pelo primeiro para controlar o abuso do poder e garantir a soberania dos cidadãos. Por outro lado, ao desqualificar a relação dos cidadãos com os Estados democráticos, a corrupção compromete a cooperação social e afeta negativamente a capacidade de coordenação dos governos para atender as preferências dos eleitores. Os seus efeitos impactam, portanto, tanto a legitimidade quanto a qualidade da democracia ao comprometer o princípio segundo o qual nesse regime ninguém está acima da lei, contribuindo assim para o esvaziamento dos mecanismos de responsabilização de governos, próprios da accountability vertical, social e horizontal, como identificados pela ciência política contemporânea.
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Com efeito, para ser efetiva, a accountability vertical – que se realiza através do voto dos eleitores – depende de que os cidadãos tenham consciência de que têm o direito e o dever de manter a conduta de seus líderes políticos dentro de padrões republicanos estritos, e de puní-los quando eles violam esses padrões. Esse tipo de accountability implica em dois requisitos básicos: em primeiro lugar, os cidadãos precisam poder perceber que a corrupção existe, quando é o caso. Nesse sentido, argumentar que todos os líderes políticos são corruptos ou que a corrupção se justifica porque muitos políticos a praticam – como importantes líderes políticos, intelectuais e artistas sustentaram em anos recentes no Brasil – é uma forma de desqualificar a democracia porque as opções eleitorais orientadas por essa posição simplesmente excluem a possibilidade de mudança política. Mas, além disso, os cidadãos precisam ser capazes de avaliar, em alguma medida, os impactos políticos da corrupção para, então, decidir se querem responsabilizar os envolvidos por meio dos mecanismos democráticos de sanção: eleições, procedimentos legislativos e jurídicos, impeachment, denúncias, protestos, etc; ou se querem simplesmente continuar convivendo com eles a despeito das suas violações da lei e da constituição. Esses são alguns dos principais fundamentos do funcionamento das instituições do Sistema de Integridade que está se consolidando no país depois de 1988 – Polícia Federal, Ministério Público, Tribunais de Contas e Justiça Federal –, cujo papel não se limita a identificar e punir as práticas ilegais, mas se refere também à missão de informar a comunidade política sobre o desempenho dos governos e das instituições republicanas; para além de obter o apoio da opinião pública para as suas ações, isso também visa informar os eleitores sobre o desempenho de governos e representantes políticos, de modo a subsidiar e qualificar as suas escolhas eleitorais.
A pesquisa acadêmica sobre a corrupção política tem abordado principalmente o papel de fatores gerais supostamente responsáveis pelo seu enraizamento no sistema político: o desenvolvimento econômico, o desenho institucional, o perfil psicológico dos atores, o desempenho de governos, etc. Em que pese a relevância destes fatores, até agora, contudo, com poucas exceções, a pesquisa tratou apenas indiretamente da relação entre o abuso do poder público, a percepção dos cidadãos sobre ele e os seus efeitos para a qualidade da democracia. O papel dos valores e da cultura política na aceitação ou na justificação da corrupção tem sido negligenciado, ainda que o seu impacto sobre um amplo espectro de práticas civis, políticas e negociais seja cada vez mais reconhecido pela literatura especializada. Por exemplo, além da punição da corrupção, um dos resultados mais importantes da operação Lava Jato é contribuir para rejeitar a cultura que considera natural a corrupção como meio de se fazer política no país.
Tudo isso mostra que está correto o fato de o foco das atividades de combate à corrupção envolverem, entre outras coisas, o conhecimento da relação entre as ações das instituições do Sistema de Integridade e os valores e ideias que norteiam e orientam o desempenho dos seus agentes, a exemplo da operação Lava Jato. Essas orientações ideacionais afetam e influenciam os modos como os cidadãos vêm e avaliam a corrupção, e o quanto essas percepções e convicções afetam o seu apoio a governos, a instituições públicas e à democracia. Nesse sentido, pesquisas sobre as percepções públicas a respeito da corrupção, a exemplo da Transparência Internacional, podem fornecer informações relevantes para o conhecimento do fenômeno e são cada vez mais necessárias. Há muito o que se fazer ainda nessa direção, e as análises deveriam explorar melhor as implicações do fenômeno da corrupção para a a democracia tendo em conta tanto a abordagem institucional, como a da cultura política. O Instituto Não Aceito Corrupção e os seus colaboradores pretendem contribuir para isso. E na Universidade de São Paulo tenho conduzido pesquisas nessa direção.
Fonte: “Instituto Não Aceito Corrupção”
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