Algo vai mal quando a presidente da Suprema Corte, em tom solene, declara que a lei vale para todos e assim será aplicada. E ainda colhe aplausos de muita gente. Firme pronunciamento, foi um comentário comum.
Mas isso, que lei vale, não deveria ser um fato dado? É assim que funciona numa democracia. E se fosse isso mesmo, a fala da ministra Cármen Lúcia teria sido uma formalidade inútil. Claro que a Corte está lá para cumprir a lei.
Mas o discurso e o fato de ter sido reconhecido como importante dizem muita coisa sobre a realidade brasileira hoje.
Na última pesquisa Datafolha, por exemplo, nada menos que 80% dos entrevistados disseram acreditar que Lula sabia da corrupção praticada durante seu governo e o de Dilma. Mas apenas 54% acham que o ex-presidente permitiu que a roubalheira ocorresse. Logo, há uma parcela nada desprezível para a qual Lula sabia da corrupção, uma óbvia ilegalidade, não consentia com essa prática, mas também não a impediu. Ou seja, para essas pessoas, a roubalheira era inevitável, algo normal.
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Ou ainda, a lei não se aplica neste caso, e os tribunais deixam passar.
Forçando a barra?
Então, tomemos outro dado. Se 80% acham que Lula sabia da corrupção, apenas 50% dos entrevistados consideraram justa a sua condenação. E ainda: 56% acham que ele não será preso. Essa parcela já foi maior (66% na pesquisa anterior), mas a conclusão permanece: ampla maioria acha que o ex-presidente tinha conhecimento da corrupção, apenas metade dos entrevistados considerou justa a condenação, e mesmo assim outra maioria de 56% acha que ele não será preso por isso.
Ficando apenas no universo dos que declaram voto em Lula, 68% disseram acreditar que, sim, ele sabia da corrupção durante seu mandato. E como continuam votando nele? Bom, para 50% dos seus eleitores, o ex-presidente não poderia fazer nada para evitá-la. Logo, para os restantes 28% ele sabia e deixou rolar. E continua merecendo o voto.
Tudo considerado, pode-se ver aí uma variedade de atitudes de tolerância com a roubalheira e com os governantes que convivem com essas ilegalidades e simplesmente deixam passar.
Portanto, faz sentido o tom solene de Cármen Lúcia para anunciar que esta Suprema Corte está disposta a ser rigorosa no cumprimento da lei. Do mesmo modo, faz sentido o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luiz Fux, declarar em voz ainda mais alta que a Justiça será “irredutível” no cumprimento da Lei da Ficha Limpa.
Uma digressão: sabem os leitores que nós, jornalistas, estamos sempre procurando saber quais as notícias importantes e interessantes. Há vários critérios sugeridos para essa escolha, um deles bem curioso. Diz assim: inverta a notícia; se ficar melhor, mais forte que a original, então esta não presta.
No caso, seria um espanto, uma manchete, pois, se o presidente da Justiça Eleitoral dissesse que a Lei da Ficha Limpa não será aplicada nestas eleições e que essa é uma posição irredutível da Corte. Por essa lógica, desenvolvida por colegas americanos, Fux dizer que vai aplicar a lei com rigor seria uma formalidade tão inútil quanto a de Cármen Lúcia. E, entretanto, ambos ganharam manchetes.
Aplicar a lei virou mérito, firme declaração de propósitos. E isso só acontece quando a lei não se aplica e/ou quando boa parte do público acha que não será seguida.
Já tratamos aqui dos que estão acima da lei — autoridades, líderes políticos e governantes para os quais uma das prerrogativas de seus cargos e funções é justamente a de não seguir a lei.
Pode-se demonstrar isso com facilidade. Mas há o reverso da história — dos que estão abaixo da lei e não são protegidos por ela.
Um exemplo simples: a lei maior, a Constituição, diz que a saúde é direito do cidadão e dever do Estado. Logo, todo brasileiro tem o direito de ser atendido nos melhores hospitais, com os melhores tratamentos, tudo isso de graça.
Certo? Errado. Há uma enorme diferença entre estar na fila do SUS e ser atendido no melhor hospital privado do país por conta do governo.
Nos dois casos, a lei é ignorada, num caso retirando direito; no outro, concedendo privilégios.
Cármen Lúcia e Fux têm razão.
Fonte: “O Globo”, 08/02/2018