Fernando Pessoa traduziu angústia por uma palavra mais aconchegante: desassossego. Por ela motivado, escreveu notas reunidas num livro notável, confirmando a união de poesia com filosofa, como afirmam seus intérpretes mais consagrados como José Paulo Cavalcanti Filho.
Nasci numa casa onde os livros não eram fonte de informação e sabedoria. Donde a importância das mulheres com seus missais e promessas. Elas ouviam sermões enquanto os homens discutam política e futebol com um entusiasmo e uma ignorância do tamanho de suas preferências. Educação é sinônimo de “boas maneiras” no Brasil. Será preciso equacioná-la mais à sabedoria do que ao diploma que, engendrando privilégios, promove vergonhosas falsificações.
Nos livros encontrei “veritas” – verdade, candura, sinceridade – porque os livros não se refazem. Não desfazem o que estampam. A propósito, veritas é o lema da Universidade Harvard. A verdade pode ser discutida, mas não assassinada. Não existiríamos sem as canduras e sinceridades de veritas.
Li Fernando Pessoa quando virei aprendiz de Antropologia, essa disciplina do desassossego que, descobrindo outras humanidades, é uma máquina de liquidar utopias e absolutos. Senti um imenso alívio quando li no Lévi-Strauss do Tristes Trópicos que “nenhuma soledade é perfeita, todas comportam, por natureza, uma impureza incompatível com as normas que proclamam e que se traduzem concretamente por uma certa dose de injustiça, de insensibilidade, de crueldade”.
A Antropologia me ensinou que o bicho-homem precisa de radicalismos, justamente porque é desprogramado. Necessita de mediadores: fogo, abrigo, instrumentos, de mitos, crenças e regras – mas, sobretudo, de coragem para carregar (e entender) suas contradições.
No Trecho 207 do Livro do Desassossego, há o seguinte: “Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso com essa dupla existência da verdade”.
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Usei esse trecho como epígrafe do meu livro Carnavais, Malandros e Heróis (publicado em 1979) para sugerir a paradoxal duplicidade das verdades do Brasil. Fomos uma monarquia imobilizada por nascimento, que se via como branca, mas era movida a escravidão negra.
Hoje, somos republicanos na letra, mas insistimos em permanecer nobres na prática. Os privilégios levaram um sistema cuja premissa é a da igualdade de todos perante a lei, a uma falência financeira que a nossa duplicidade ética (aos conhecidos tudo, aos desconhecidos a lei) não pode mais deixar de reconhecer. Uma segregação incompatível entre trabalho e emprego criou uma desigualdade de raiz.
Como na parábola de Fernando Pessoa, todos têm razão e uma razão geral deságua num imenso desassossego. O que Darcy Ribeiro chamava de “processo civilizatório” virou uma “descivilização”. Hoje, os fins justificam todos os meios e os atores movidos por egoísmo, familismo e partidarismo primário não têm como desempenhar papéis públicos destinados ao altruísmo. Reduzimos os espaços de negociação que são o centro da civilidade e daquilo que nos torna Homo sapiens: a capacidade de relativizar extremos.
Se não negociamos nossas verdades que, em geral, a morte leva para a grande terra do esquecimento; se Bolsonaro não pensa mais no seu papel de magistrado e atua somente como capitão, um dia ele acaba assinando, movido por suas forças ocultas, sua própria demissão.
Fonte: “Estadão”, 19/06/2019