Quando, em 1993, aceitei o convite do meu amigo Fernando Mitre para escrever em jornal, estabeleci que julho seria um momento de pausa. Um tempo de sair das “trincheiras magras”, como diz o meu colega e amigo Luiz Werneck Vianna. Nascido em julho, o resultado da pausa é um aniversário. Desse modo, depois de cada hiato jornalístico, volto pior e mais velho.
Muito antigamente, quando criança, eu exultava pensando no bolo de chocolate que mamãe disse ser o meu favorito e nos presentes que, ao contrário do bolo, jamais atenderam às minhas expectativas.
Volto, então, a esse espaço definitiva e irremediavelmente velho. Um idoso de 83 anos que continua trabalhando, mas goza do inefável direito de furar fila de banco e de não pagar transporte público o que, dizem-me, é uma grande vantagem neste país no qual “tirar vantagem em tudo ou de tudo” não é uma frase feita, mas um aforismo ético.
Por um instante cogitei uma reversão. Uma “fada boa”, saída das histórias que tia Amália nos contava em dias chuvosos, bem que poderia me fazer voltar ao rapaz de 38 anos, estudante da vida e com a coragem de estudar sociedades tribais situadas nos porões de um Brasil que, naquela etapa da minha vida, era enorme. Quando alcancei meus 50 ou 60 (não me lembro mais), um saudoso tio Mário me disse que eu só iria entender o “Enigma da Esfinge” quando chegasse aos 80. Hoje, ainda me familiarizando, aos 83, vejo como ele estava certo.
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A Esfinge – mistura monstruosa porque combinava contornos e membros de leão, águia e mulher – punha diante dos homens um enigma. Uma questão ambígua como a máquina de codificar mensagens dos nazistas – uma charada difícil de decifrar. Como todas as coisas que fazem e não fazem muito sentido, como o amor, a politicalha e a vida, a Esfinge – tal como esse nosso Brasil que, volta e meia, se volta para si mesmo tentando desmanchar o que fez – o monstro, ademais, tinha um lema: “Decifra-me ou devoro-te!”. Não havia jeitinho, segunda instância ou Supremo para a Esfinge.
“Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, de tarde sobre duas e a noite sobre três?”, perguntava. Édipo, famoso por ter como sina matar o pai, casar com a própria mãe e ter plena consciência desse trajeto inexorável de vida, respondeu:
– Esse bicho é o homem que engatinha na infância, anda ereto na idade adulta e usa uma bengala na velhice.
Decifrado o enigma, a Esfinge fez como faz a mentira dos legalismos jurídicos destinados a proteger corruptos e os fantasmas que não resistem à luz do dia: ela se jogou de um precipício.
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Tenho pensado em usar uma bengala. Meus oito netos (cinco mulheres e três homens) – todos eretos e luminosos nas suas juventudes e no seu generoso amor ao avô – dizem que eu vou chegar aos cem que eu secretamente sei que é, no fundo, um “sem”…
O fato concreto é que impossível estar entre os 80 e os 90 sem pensar que as primaveras se acabaram. E que o inverno e o fim são tranquila e orgulhosamente aceitos. O sono profundo é uma remissão para o ator que foi chamado a abandonar um drama para o qual entrou sem ser consultado.
*
Acabo de dar um gole no meu uísque dominical. O ciclo da vida me invade o coração e eu penso no William Blake de Songs of Innocence. Diante da minha niteroiense Esfinge, entendo que a infância é uma fase marcada por repressões e aprendizados.
Saímos do aconchegante peito aprendendo uma língua igualmente materna. Em seguida, nos ensinam a andar e a cair. Amamos incondicionalmente os deuses que, sem saber ou querer, nos engendraram e como dramaturgos inconscientes nos dirigem. É disso que vêm a inocência.
Já a mocidade é a idade da onipotência e do narcisismo. Não há morte na juventude. Nessa fase tudo vai dar certo, exceto quando a namorada muda da cidade ou diz que acha que não gosta mais da gente. É quando se começa a conhecer o tal “vale de lágrimas” inscrito na prece à “Virgem-mãe”, que nos ama incondicionalmente mesmo quando viramos bandidos e pecadores.
Nada pode nos acontecer, exceto a morte de um avô que vovó impediu que velássemos porque perderíamos o baile para o qual, graças ao seu aval sábio e generoso, fomos sem culpa.
Na velhice, memórias bem guardadas retornam com a vivacidade dos banhos frios. Agora há a fragilidade que faculta fantasias. Como um pôr do sol, vem o sentimento do que foi perdido e não pode ser consertado. A corcunda dos velhos é a mochila dos seus feitos. E, no entanto, só uma longa vida permite descobrir quem merece ou não o nosso amor.
Você sente o nojento cheiro do ralo, mas também aspira à fragrância dos amores-perfeitos.
Com seu enigma decifrado, a esfinge sofreu uma grande frustração, jogou-se num precipício e pereceu.
Fonte: “Estadão”, 21/08/2019