O motivo era banal, embora o assunto fosse por demais complicado. Num gesto generoso, titia serviu ovos cozidos para todos nós, “meninos” ou “crianças”, na grande e lateral varanda da “nossa casa”, no bairro do Ingá, em Niterói. Digo nossa com aspas porque vovô Raul, conquanto fosse um desembargador aposentado e membro da elite do Estado do Amazonas, não deixou nenhuma casa, mochila com dinheiro ou fortuna. Dele herdamos uma certa consciência civilizatória hoje em desuso e franca destruição.
Foi um acontecimento e uma alegria ter aqueles ovos cozidos que só os adultos saboreavam com cerveja, à nossa disposição – uns oito ou nove meninos – cujas iguarias eram pão com muita manteiga, doce de leite condensado e preciosas moedas de chocolate.
Estávamos devorando os ovos quando surgiu a questão: Quem vinha primeiro; a galinha ou o ovo?
Ivo – um menino levado, que havia experimentado poucas uvas e nenhuma Eva – respondeu: “A galinha, é claro; é ela quem bota os ovos que estamos comendo!”. Já o Maureca, cujo sonho era ser oficial de Marinha retrucou – com aquela inflexão grave e bíblica dos entendidos em política – “nada disso, quem vem primeiro é o ovo!”.
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Passa o tempo e, um dia, num encontro internacional no Instituto de Antropologia Social da Universidade de Nova Caledônia, nos Estados Unidos, num seminário presidido pelo famoso e pioneiro brasilianista Richard Moneygrand, 10 ou 12 profissionais da disciplina do desengano, a tal Antropologia Social que fala daquilo que todos pensam que sabem, mas não sabem e, horrorizados, ficam sabendo que há saberes distintos; discutíamos justamente quem vinha primeiro: se era o indivíduo (com suas paixões e interesses) ou a sociedade (com suas regras e tabus).
Foi um debate danado até que alguém sugeriu que um termo dependia do outro. Eles surgiam como opostos em certas ocasiões, mas, no fundo, complementavam-se. No fundo, disse o Dr. William Fly, do Imperial College, quem inventava o indivíduo como protagonista era uma situação – logo, a sociedade.
Seria preciso admitir como é complexo individualizar e quando vivemos o individualismo como um valor, sentimos o peso das éticas e, com elas, o protagonismo implícito da sociedade. A visão de perto nos entrega indivíduos, a distanciada põe sua existência em dúvida.
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O ovo comido como “comida” é mais concreto do que a sua relação com a galinha, com o cozimento e com quem o cozinhou. Somos nós que vestimos roupas, ou são elas que nos vestem? Uma dor de dente fratura o nosso corpo como um todo e chama atenção para uma de suas partes. Para alguns psicólogos, a “dor” é essa consciência aguda de alguma coisa. O sofrimento – como a arte – é uma ruptura com um todo.
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A essa altura vale perguntar, com um velho jornalista, se era ele quem escrevia no jornal ou se era o jornal que nele se escrevia…
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Não posso deixar de assinalar que essa reunião dedicada ao estudo dos elos entre a parte (o indivíduo) e o todo (a sociedade) aconteceu num 12 de junho, uma data transformada pela nossa permanente (mas inconsciente) magia num “Dia dos Namorados”.
Quando se fabrica um dia especial ou um momento destacado, continuou o professor Fly, dando substância aos seus argumentos e imediatamente questionando se os feriados (nos quais nos livramos do trabalho como chamado e castigo) não seriam “momentos da sociedade” ou do “todo” impostos aos indivíduos que assim se sentem parte dele.
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Horas depois, vi o velho professor Eduard Fox, de Oxford, dando discretamente umas flores a Miss Gloria (apelidada de Miss Delicious), a eficiente secretária do nosso encontro.
Honrando esse glorioso “Dia do Namorados”, acrescento que nele não celebramos apenas os namorados, mas o “enamoramento”. A maravilhosa fascinação freudiana de uma relação caracterizada pelo abandono de uma consciência em favor de outra. Forma de entrega na qual o corpo se confunde com a alma por meio do coração, como diziam os antigos.
O enamoramento abre o paraíso na dura realidade da vida. Ele dissolve galinha e ovo. Nele, permita-me o leitor, some também a distância entre o menino carente e o velho também carente.
Fonte: “Estadão”, 12/06/2019