O SS George Washington, com Woodrow Wilson a bordo, levantou âncora de Nova York no dia 4 de dezembro de 1918. Pela primeira vez, um presidente dos EUA viajava ao exterior durante seu mandato.
Junto com o presidente, o navio levava doutrinas que, nas palavras de Henry Kissinger, “situaram os diplomatas europeus em terreno completamente desconhecido”.
O Tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, consagrou as duas ideias fundamentais de Wilson: autodeterminação dos povos e segurança coletiva. Cem anos depois, os esperançosos faróis de Versalhes converteram-se nas encruzilhadas cruciais da ordem global do século 21.
Paz perpétua —a utopia de Wilson seria erguida sobre o duplo alicerce do direito de todas as nações a um governo soberano e da cooperação mundial numa estrutura de prevenção de conflitos. Um “governo mundial”? A igualdade entre as potências e as pequenas nações?
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Na avaliação sardônica de um diplomata britânico, conta-nos Margaret MacMillan, o sonhador presidente dirigia-se à Conferência de Paris imbuído da “mesma fascinação de uma debutante com a perspectiva de seu primeiro baile”. Mas, como a força quase tudo pode, os europeus bailaram a valsa americana. A ordem que dali emergiu durou curtos 20 anos, até a deflagração da nova guerra mundial. As duas ideias revolucionárias continuam a nos atormentar.
A Liga das Nações, imaginada por Wilson como substituto da doutrina europeia do equilíbrio de poder, continha uma dúbia promessa americana de ruptura com o isolacionismo. O próprio Wilson elegera-se, em 1916, sob um slogan isolacionista: “Ele nos manteve fora da guerra”. Sua promessa foi quebrada pelo Senado, que rejeitou a adesão dos EUA à Liga em novembro de 1919. Mais tarde, diante de uma tragédia ainda maior, Franklin Roosevelt restauraria o vaso partido da segurança coletiva, refazendo a obra inconclusa de Wilson pela criação da ONU.
A longa paz armada da Guerra Fria sustentou-se tanto sobre a segurança coletiva quanto sobre o equilíbrio de poder. A convicção internacionalista de Roosevelt nutriu a aliança entre EUA e Europa, que propiciaria, meio século depois, a derrubada do Muro de Berlim e a incorporação dos antigos Estados-satélites soviéticos à União Europeia. Mas a corrente histórica entrou em forte refluxo.
“America First”: no laboratório de Trump, a semente congelada do isolacionismo foi cruzada com a do nacionalismo. Os EUA renegam, um após o outro, seus compromissos multilaterais. O conceito de segurança coletiva, invenção americana que reconfigurou a política mundial do século 20, terá um lugar neste século 21?
“Os direitos e liberdades das pequenas nações” —o lema de Wilson nunca ganhou significado preciso. Quais seriam, no xadrez das línguas e etnias, os nacionalismos legítimos? O presidente americano não deu ouvidos aos irlandeses, que queriam se separar do Reino Unido. Na prática, a autodeterminação serviu ao objetivo das potências aliadas —Reino Unido e França— de fragmentar os impérios da Europa Central. Mas o mapa wilsoniano da Europa só durou até 1945, quando o manto da URSS desceu sobre os estilhaços orientais dos impérios Russo, Alemão e Áustro-Húngaro.
Os impérios ressurgiram em novas roupagens. Na Europa Ocidental, para extinguir a chama dos nacionalismos e resistir à pressão da URSS, nasceu o embrião da União Europeia. O tratado fundador foi assinado em Roma, num gesto simbólico destinado a avivar a memória de uma unidade ancestral.
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Dois blocos geopolíticos em confronto: alguém, apressado, declarou a morte dos nacionalismos. Contudo, na Europa desse novo século, pelos megafones de uma direita reinventada, ressurge o clamor da “nação de sangue”, com seu cortejo de ressentimentos e seus agressivos impulsos de exclusão.
Cem anos, quase nada. As indagações de 1919 seguem, intactas, entre nós.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 29/06/2019