Introdução: passado o fragor da batalha, retorno à minha fortaleza
Já ultrapassado o dilema eleitoral do segundo turno das eleições presidenciais, com uma punição exemplarmente aplicada pelo eleitorado brasileiro ao partido que saqueou o Brasil e os brasileiros durante mais de três lustros, cabe agora refletir sobre as próximas etapas do debate de ideias em torno das principais políticas públicas a serem implementadas num país que ainda se recupera tentativamente da mais grave recessão de toda a sua história econômica. Como professor de economia política, mas também como burocrata do serviço exterior, sou naturalmente levado a refletir sobre as políticas que podem ser aplicadas no plano das relações econômicas internacionais do Brasil, e a debater as melhores opções para o desenvolvimento do país.
Livre da obrigação de participar dos debates públicos em torno das opções eleitorais que se apresentavam ao eleitorado – como parte desse eleitorado, como cidadão consciente e como, talvez, um formador de opinião –, posso agora refugiar-me em meu quilombo de resistência intelectual, que é o blog Diplomatizzando, e continuar atuando em favor das mesmas causas pelas quais me tenho batido nas últimas décadas: contribuir para a formação de uma consciência a mais esclarecida possível sobre as melhores políticas públicas que se abrem ao país nesta fase de transição. Não mantenho nenhuma ilusão de que minhas reflexões, invariavelmente postadas neste espaço, possam ser de grande valia no espaço público mais próximo dos círculos decisórios, uma vez que não desempenho, e não pretendo desempenhar, nenhum cargo executivo ou de formulação de políticas com aquele objetivo.
Minha única intenção é a de manter uma função pedagógica – o que já faço através de meus escritos e minhas aulas – no sentido, justamente, de oferecer sugestões que me parecem compatíveis com as necessidades do Brasil, em termos de políticas econômicas e daquelas que, inscritas na agenda externa, compõem o vasto campo das relações econômicas internacionais do país. Ou seja, pretendo continuar exercendo meu papel de observador critico do cenário doméstico e internacional e de espectador engajado na definição das melhores políticas nos terrenos acima descritos, mas unicamente a partir deste meu quilombo, sem qualquer conexão direta com os centros de poder. Não tenho, aliás, porque esconder o fato de que eu me abstive no segundo turno das eleições, preferindo não ter de escolher entre um e outro candidato, pois ambos me pareciam ser “soluções” de terceira ou quarta qualificação, sem qualquer concessão ao politicamente correto.
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Vejamos, pois, quais seriam as minhas observações sobre a presente fase do Brasil, e o que poderíamos oferecer como reflexões sobre o momento presente.
O que as sociedades normais precisam para evoluir?
O desenvolvimento normal das sociedades deveria leva-las, quase que naturalmente, da privação a satisfação das necessidades básicas, e daí a uma condição média de vida, podendo abrir caminho para a prosperidade, com base num processo de crescimento econômico sustentado, com transformações estruturais e tecnológicas e um processo simultâneo e consequente de distribuição social dos retornos e benefícios associados a esse crescimento. No caso do Brasil, economia relativamente avançada, que já ultrapassou a etapa da industrialização básica, possuindo algum grau de sofisticação tecnológica, mas sem total autonomia no setor, o desafio parece ser o de alcançar um patamar superior de renda per capita, o que para alguns economistas depende de escapar da chamada “armadilha da renda média”. Pessoalmente, não acredito nesse conceito de “armadilha da renda média”, mas admito que o Brasil tropeça há muito tempo numa condição de desenvolvimento médio, sem conseguir dar o salto qualitativo que transformaria a acumulação quantitativa de renda per capita em patamar superior de prosperidade e bem estar.
No plano político e institucional, esse processo de aperfeiçoamento da base material da sociedade deveria ser complementado pela construção de uma arquitetura estatal formalmente democrática, fundada sobre a representação legítima dos cidadãos e sobre uma administração pública transparente e responsável (ou accountable). No caso do Brasil, não é preciso enfatizar a situação de nossa democracia de baixíssima qualidade, com alto grau de corrupção, deformações evidentes nos sistemas político e partidário, e da representação proporcional, uma interação altamente enviesada, para não dizer promíscua, entre os poderes da República, e uma exacerbação patrimonialista dos interesses corporativos que ganham acesso e controlam o aparato público, em seu próprio benefício e com vantagens tipicamente de Ancien Régime aristocrático.
De fato, nem todas as sociedades transitam tranquilamente, por meio de ganhos sucessivos de aperfeiçoamento econômico e de progresso político, de uma situação de baixa densidade democrática e de pouca eficiência no sistema produtivo para altos patamares de desenvolvimento nas duas vertentes. O Brasil é um exemplo claro de país que perdeu várias oportunidades de avançar para uma sociedade desenvolvida, de alto grau de desenvolvimento econômico, e de boa qualidade no terreno das instituições políticas. Persistem a baixa produtividade, a medíocre competitividade de seu sistema econômico, uma promiscuidade inaceitável no sistema político, níveis lamentáveis de educação pública, um quadro alarmante de insegurança cidadã e um grau de abertura econômica e de interdependência global claramente insuficientes, para uma participação satisfatória do país nos circuitos dinâmicos da economia mundial.
Esta não é uma característica exclusivamente brasileira, uma vez que diversos outros países na região também apresentam deficiências comparáveis. Existem fases, na vida das sociedades, durante as quais o crescimento e a prosperidade são reduzidos, ou eliminados, ou seja, uma situação de quase estagnação ou mesmo de retrocesso. O mesmo pode ocorrer no plano político-institucional, quando podem ocorrer reversões da trajetória democrática. A culpa por esse tipo de situação é sempre das elites, uma vez que a população apresenta uma média de baixa educação política, quando não de educação tout court, e sua baixa renda atua justamente no sentido de consolidar baixos níveis de poupança e, portanto, de investimento. As elites não são unicamente representadas pelas velhas oligarquias, pelo empresariado industrial, pelos homens de negócios, por banqueiros endinheirados; podem ser perfeitamente, como foi o caso no Brasil, de novas elites saídas do sindicalismo militante, e de partidos de esquerda – supostamente comprometidos com políticas redistributivas – mas que podem ser tão ou mais corruptas, ineptas e inconsequentes quanto foram as elites tradicionais.
O que fazer, a partir de agora?
Nesses casos, é preciso resistir, persistir, perdurar nos combates em favor de reformas estruturais, na correção das deformações econômicas e políticas, até que novas condições normais de atuação estejam disponíveis para a atuação de novas elites comprometidas com o progresso econômico e o aperfeiçoamento político. É preciso manter valores, princípios e objetivos que se identificam com as aspirações legítimas de uma sociedade democrática, funcionando sob um regime de mercados abertos, num sistema plenamente competitivo e integrado à economia mundial. É o que pretendo fazer a partir de agora, independentemente de quais sejam as orientações do novo governo que toma posse em janeiro de 2019. Vou continuar mantendo meu olhar crítico, meu ceticismo sadio, minha autonomia de pensamento e minha capacidade de contribuir para um debate de ideias d alta qualidade, comprometido unicamente com os objetivos já expostos aqui.
Meu quilombo de resistência intelectual permanecerá alerta e atento às questões do momento e aos grandes debates conceituais em torno dos problemas do país. Em outros termos, permanecerei sendo o mesmo contrarianista de sempre…