Os três PMs mortos no Rio num único dia, a quarta, 21 de março, os 30 assassinados em menos de três meses de 2018 e os 134 exterminados em 2017 são cadáveres anônimos, ao contrário de Marielle Franco. Longe das luzes e câmeras, estão também as 1.124 pessoas mortas pela polícia no ano passado, supostamente por resistência a intervenções policiais. A distinção entre a vereadora do PSOL e todos os demais tem sentido, pois a única vítima célebre foi, ao que tudo indica, alvo de um crime político. Mas o contraste entre luz e sombras também sinaliza a naturalização da barbárie que está em curso. É em nome de todos os mortos que seria preciso erguer um memorial a Marielle. Nunca, porém, uma estátua em mármore disponível para selfies de turistas ávidos por estilhaços da sofrida, folclórica “história dos nativos”.
“Tem que pagar por esse crime bárbaro”, disse o ministro Raul Jungmann, comprometendo a intervenção federal com a célere apuração dos nomes dos “executantes” e dos “mandantes”. Se a promessa for cumprida — especialmente na parte dos “mandantes”, sejam “de dentro ou de fora da polícia” — surgirá o esboço do memorial certo. Mas faltará ainda a substância: a separação radical entre o Estado e o crime organizado, por meio de uma profunda reforma da polícia. O passo decisivo depende menos de Jungmann ou do governo federal que da articulação dos partidos e da sociedade civil. O memorial jamais será erguido sem um consenso mínimo entre as principais forças políticas do Rio.
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Uma campanha odienta nas redes sociais, estimulada por partidários de Jair Bolsonaro, almeja matar Marielle pela segunda vez, sugerindo uma associação entre a vereadora e o Comando Vermelho. No polo oposto, o PSOL e o PT reduzem a vítima à condição de cadáver útil, isto é, de um veículo inerte propício à difusão de discursos sectários. No lugar de alianças políticas em torno de metas comuns, os dois partidos entregam-se a um jogo de espelhismos que só interessa ao “bolsonarismo” — e, por extensão lógica, à facção bandida da polícia.
A narrativa psolista emana da ideia, caricatural e populista, de uma guerra entre o Estado e o “povo da favela”. No discurso de inúmeros porta-vozes do partido, Marielle é vítima da intervenção federal, que seria conivente com a polícia-bandida e as milícias. A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário — e, como consequência, desvia-se o foco das associações criminosas entre a polícia, as milícias e o narcotráfico. Chamemos isso de “imobilismo revolucionário”: no fundo, o PSOL está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não chegar ao poder, conduzindo o povo oprimido à redenção final.
A narrativa petista, por sua vez, emana da ideia do “golpe”. Dilma Rousseff: “o que aconteceu com a Marielle Franco faz parte de um dos atos deste golpe que desencadearam no Brasil desde 2016. Por que eu digo que faz parte? Porque o golpe não é um ato, o golpe é o processo.” Num ápice agônico de oportunismo, o PT pretende convencer-nos de que Marielle é Dilma e é Lula, de que os responsáveis pela execução da vereadora são o impeachment e a sentença condenatória do TRF-4. O discurso petista esconde, numa paisagem de brumas, o colapso da segurança pública no Rio e o fracasso da política das UPPs. Chamemos isso de “imobilismo eleitoreiro”: no fim, o PT está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não retornar ao Planalto.
A estátua em mármore, pontilhada por placas de metal exibindo palavras de ordem revolucionárias ou slogans eleitorais — isso é tudo que propõem o PSOL e o PT. Mas, desgraçadamente, os dois partidos são indispensáveis para a produção de um consenso democrático no Rio capaz de isolar a parcela da elite política associada ao crime.
“Crime organizado” distingue-se de criminalidade comum pela circunstância de que é um fruto da política. O crime se organiza quando agentes públicos estabelecem pactos de poder e negócios com facções criminosas. A força territorial do narcotráfico e das milícias atesta o grau de degradação da polícia, que deixou de ser um instrumento de manutenção da ordem pública para servir a diversos interesses privados em conflito. A intervenção federal restrita à segurança pública é insuficiente para restaurar a ordem. O nó precisa ser desatado na esfera política, por meio da unidade das forças democráticas em torno de um programa comum de reforma policial.
“Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”, gritam os militantes psolistas, sacrificando o diálogo no caldeirão fervente da ideologia. A intervenção federal não resolve, por si mesma, a questão do colapso da segurança pública, como sabem os chefes militares experimentados. Mas a rejeição do PSOL e do PT à política democrática condena o Rio a depositar suas esperanças no improvável sucesso da operação militar. Nada de memorial, uma estátua na praça e uma cova rasa para os mortos sem nome — é só isso que teremos?
Fonte: “O Globo”, 26/03/2018