A democracia ocidental não tem memória própria. Menos ainda, em sua bandeira, a verdade. O procedimento político surgiu para evitar a proclamação, por alguém, da sentença absoluta sobre o certo ou o errado, com autoridade social e efeito erga omnes, a partir de registro histórico irrecorrível.
A experiência ocidental com o exercício do poder absoluto, na Idade Média, a partir da fé incontrastável da autoridade religiosa e da razão soberana do rei, produziu revoluções de toda ordem. O rebelde homem moderno só aceita viver sob sua própria visão da História. Memória e verdade deixaram de ornar os altares sagrados e os palácios régios e passaram ao domínio ordinário do cidadão, nos lares e nas praças.
No espaço público, a modernidade substituiu a certeza estática da fé e do julgamento soberano pela dinâmica das ciências, das eleições sucessivas e contrastantes, dos veredictos judiciários nem sempre harmônicos. A democracia barulhenta e inconstante é a chave do novo mundo. Só funciona como ritual civilizatório enquanto fundada no princípio da tolerância.
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Hans Kelsen sintetizou a questão: “Um dos princípios fundamentais da democracia é o fato de que cada um deve respeitar a opinião política dos demais, uma vez que todos são iguais e livres. A tolerância, os direitos das minorais, a liberdade de expressão e a liberdade de pensamento, tão característicos da democracia, não têm lugar num sistema político baseado na crença em valores absolutos. Essa crença invariavelmente conduz – e sempre conduziu – a uma situação em que aquele que afirma possuir o segredo do bem absoluto se arroga o direito de impor sua opinião e sua vontade aos outros, que estão enganados. E, segundo essa concepção, enganar-se é cometer um erro e, portanto, tornar-se sujeito a punição. (…) Pode ser que a opinião da minoria, e não a da maioria, esteja correta. Unicamente por causa desta possibilidade, que só o relativismo filosófico pode admitir – que o que está certo hoje pode estar errado amanhã –, a minoria deve ter o direito de expressar livremente sua opinião, e deve ter todas as oportunidades de tornar-se a maioria. (…) Este é o verdadeiro significado do sistema político que chamamos democracia, e que podemos opor ao absolutismo político apenas por ser um relativismo político” (A Democracia, pág. 355, editora Martins Fontes, edição 1993).
No Brasil de hoje, o princípio da tolerância dá voz, voto, movimento, organização e todas as franquias de expressão e ação política aos atores da democracia. Até aos que desejam o seu fim. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), conforme A Estratégia e a Tática da Revolução Socialista no Brasil (resolução do XV Congresso Nacional do partido, em São Paulo, abril de 2014), “não exclui a radicalização de nenhuma perspectiva revolucionária, não descartando qualquer forma de luta no processo de ruptura com a ordem do capital. (…) O PCB reafirma que esta transformação histórica não se dará através de um projeto reformista, mas por uma ruptura radical, na qual desempenha papel central a questão do poder, ou seja, a destruição do poder e da dominação política burguesa (…)”.
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) sustenta em seu programa (ipsis verbis) que “o Estado brasileiro não garante o mais elementar direito à vida e à segurança. As instituições que segundo a Constituição e as leis servem para proteger o povo – a polícia, a justiça, o sistema penitenciário e o poder político – estão infestadas de máfias e corruptos. A corrupção policial é avalizada pelo poder judiciário que é protegido pelo poder político. É preciso desmantelar toda esta estrutura se queremos o mínimo de segurança”.
Há pouco tempo, o PSOL, o PCdoB, o PT e outras agremiações partidárias celebraram os cem anos da revolução comunista, em sessão solene na Câmara dos Deputados. Trata-se de um dos acontecimentos políticos mais influentes do século 20.
Na perspectiva licenciada pela Constituição do Brasil, parece compatível com o Estado Democrático de Direito a referida celebração. Não terá sido por outra razão que o Poder Judiciário e os Ministérios Públicos nem sequer foram provocados para censurar o ato político pago com o dinheiro público.
O Poder Judiciário – e os Ministérios Públicos – tem, sob circunstâncias ordinárias, como é o caso das celebrações de cunho histórico e político, os olhos vendados para o julgamento das verdades partidárias. Os magistrados só devem garantir as vozes contrastantes – até as que os desqualificam como mafiosos e corruptos.
Mas a democracia também tem seus próprios limites de tolerância, de proteção última, de sobrevivência.
Sob a Constituição democrática de 1946, o Poder Judiciário, por intermédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi provocado a apurar se o Partido Comunista Brasileiro, entre outros princípios, estava disposto a exercitar a tolerância. Havia a guerra fria. O acirramento dos ânimos.
Por apertada maioria, o TSE cassou o registro do PCB. O Supremo Tribunal Federal não conheceu o recurso subsequente e o caso transitou em julgado. Iniciou-se o ciclo da clandestinidade, com novos conflitos.
No atual período democrático, não parece constitucional pôr o Poder Judiciário no jogo da política, sob o argumento da intolerância com uma ou outra celebração partidária, para a satisfação do imprudente sindicalismo de toga e de beca, com o seu faccioso ativismo autoritário, o assembleísmo corporativo, a preguiça premiada pelo massivo abandono de funções institucionais, as contas públicas arrasadas pelo desrespeito bilionário ao teto de vencimentos e de outras mazelas expostas à luz do sol.
É preciso reafirmar, sempre que possível, o princípio da tolerância, alma da democracia. E deixar o cidadão – não o líder religioso, o rei ou o juiz – decidir o que lhe parece ser a memória histórica e a verdade político-partidária.
Fonte: “Estadão”, 18/04/2019