O sistema constitucional brasileiro imergiu numa forte turbulência nos últimos cinco anos, marcada por sucessivas batalhas entre os Poderes da República, que passaram a usar de suas competências e prerrogativas institucionais não como mecanismos de estabilização e resolução de conflitos, mas como verdadeiras armas voltadas à obtenção de seus objetivos.
Nesta última quinta-feira (14) assistimos a mais uma dessas batalhas institucionais travada, desta vez, no plenário do Supremo Tribunal Federal. Em questão, a definição sobre quem teria a competência para julgar os crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, praticados em conexão com delitos eleitorais, como o caixa dois.
Para a defesa do ex-prefeito Eduardo Paz, havendo conexão entre diversos crimes afeitos a distintas jurisdições, deve prevalecer a competência da Justiça especializada. No caso específico, a Justiça Eleitoral. Para o Ministério Público Federal, por sua vez, a Justiça Eleitoral não se encontraria aparelhada para julgamentos penais mais complexos, devendo os crimes ser julgados pela Justiça comum, seja ela federal ou estadual, dependendo do caso.
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Por 6 votos a 5, a maioria dos ministros decidiu que havendo conexão entre crimes eleitorais e crimes comuns, compete à Justiça Eleitoral julgar todos os delitos. Para a maioria dos ministros, embora o artigo 109, IV da Constituição tenha atribuído à Justiça Federal a competência para julgar delitos comuns praticados em detrimento de bens e interesses da União, como a corrupção, a mesma Constituição determinou, por força de seu artigo 121, que a lei complementar definiria as competências da Justiça Eleitoral. E o Código Eleitoral estabeleceu que compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes comuns que sejam conexos aos crimes eleitorais (artigo 35, II).
Para a ministra Rosa Weber, no entanto, os diversos delitos, comuns e eleitorais, não precisariam ser julgados conjuntamente, devendo a Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e a Justiça Federal julgar os crimes comuns, sob o argumento de que ambas receberam suas competências da Constituição; não podendo uma lei infraconstitucional suprimi-las. A questão não é trivial, razão pela qual a decisão foi tão apertada.
Penso que a maioria dos ministros esteja com a razão. Crimes conexos não podem ser julgados separadamente, devendo prevalecer a jurisdição especializada, conforme determina a Constituição. Os argumentos de que a Justiça Eleitoral não está equipada não têm respaldo constitucional. O direito não pode se dobrar às conveniências. Como diria Montesquieu, mesmo a virtude necessita de limites; e esses são dados pela Constituição, mesmo que isso desagrade a maioria.
Juridicamente, as consequências do julgamento serão imprevisíveis. Há centenas de casos, como o de Eduardo Paz, já julgados pela Justiça Federal. Faltou dizer o que ocorrerá com eles. Politicamente, a sessão desta última quinta-feira deixou escancarada a batalha entre a Lava Jato e a maioria dos ministros do Supremo. As acusações aos membros do Ministério Público, coroadas pela notícia de abertura de um inquérito para apurar ataques aos membros do Tribunal, certamente não ficarão sem resposta, aprofundando nosso mal-estar constitucional.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 16/03/2019