Na segunda-feira, 15 de setembro de 2008, o banco Lehman Brothers quebrou causando um tsunami financeiro que se propagou pelo mundo, gerou uma recessão global e uma destruição de riqueza maior do que a de qualquer guerra na história.
O desencadeador da crise foi a dificuldade em avaliar carteiras de créditos subprime, nome dado a financiamentos com riscos altos. Eram operações com deficiências de originação, taxas abusivas e falta de transparência. Os volumes desses empréstimos estavam em ascensão e os montantes de riscos eram indecifráveis. Essas incertezas acenderam o estopim do pânico.
Após a tempestade, para prevenir uma nova crise, dois conjuntos de medidas foram tomados. Um foi o aumento das exigências de capital e liquidez dos bancos, onde o Comitê da Basileia teve um papel de destaque. O outro foi um conjunto de ajustes na intermediação financeira, focando na transparência e na proteção do consumidor, consolidado no DoddFrank Act, uma lei federal norte americana.
Houve um cerceamento de práticas predatórias, protegendo os bancos dos bancos. Um procedimento análogo ao de proteger os pescadores dos pescadores ao proibir alguns métodos de pesca. Os efeitos foram aumentos na rentabilidade e solidez dos bancos, uma oferta de financiamentos mais prudente, queda da inadimplência e uma contribuição importante para o crescimento da economia dos Estados Unidos nos anos seguintes.
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É possível fazer um paralelo do que aconteceu lá, com o que ocorreu com o consignado no Brasil, alguns anos antes. No segundo semestre de 2003, uma medida provisória, transformada em lei três meses depois, dispôs sobre as operações de crédito em consignação. Permitia o desconto em folha de pagamento das parcelas de empréstimos para trabalhadores, pensionistas e aposentados.
As normas eram pró-credor, ao aumentar a segurança jurídica para os bancos e reduzir a inadimplência esperada. Tinham como objetivo principal um crescimento do crédito pessoal, o que aconteceu. Mas observaram-se alguns desvirtuamentos, como casos em que a taxa praticada era mais do que o dobro da informada, juros cobrados próximos aos do cheque especial, o uso abusivo da TAC (Taxa de Abertura de Crédito) para cobrar mais, pressões para usar toda a capacidade do empréstimo do tomador e de falta transparência e de uniformidade entre as instituições.
Para corrigir as distorções, em 2006, o Conselho Nacional de Previdência Social adotou algumas normas pró-tomador. Fixou um teto de juros nos consignados para os beneficiários da previdência em 2,9%, proibiu a cobrança da TAC na contratação de empréstimos, exigiu mais transparência e limitou em 30% do benefício liquido recebido como máximo das parcelas a serem contratadas.
O resultado foi positivo para todos. A exigência de mais transparência e a inibição de práticas predatórias contribuíram para a expansão do crédito, a elevação da rentabilidade dos bancos e o impulso dado ao crescimento nos anos seguintes, com a ressalva de que tabelamento de juros não era a melhor alternativa que podia ter sido adotada.
Foi paradoxal, as medidas que foram adotadas no Brasil em 2006 e nos Estados Unidos após a crise de 2008 para defender os tomadores dos empréstimos tiveram também o efeito de proteger os bancos de práticas concorrenciais deturpadas e melhorar sua rentabilidade no médio prazo.
As lições dos dois exemplos estão consolidadas na literatura bancária há mais de um século. São que a sustentabilidade dos relacionamentos financeiros, o equilíbrio entre tomador e credor, a transparência e a inibição de práticas predatórias e do curtoprazismo são condições necessárias para uma oferta sólida de crédito.
A crise do crédito nos Estados Unidos foi aguda, a que o Brasil está experimentando nesta década é crônica. A inadimplência nos quatro anos que antecederam a crise de 2014 aumentou mais de 60% e foi um dos determinantes da contração do PIB naquele período. Agravou-se depois e atualmente está num recorde histórico. São mais de 60 milhões de cidadãos e cinco milhões de empresas com anotações de atraso de pagamentos. O efeito é o fechamento de empresas, desemprego e queda no valor de ativos reais. É uma destruição de riqueza e uma redução no potencial de crescimento do Brasil que podia ter sido evitada.
A política de crédito e os modelos de negócios adotados são os responsáveis pela situação. Por um lado, a agenda BC+ tem um viés pró-credor e é insuficiente. Ilustrando: o registro eletrônico de duplicatas dá mais garantia ao credor, o cadastro positivo só fornece mais informações ao credor, a TLP (Taxa de Longo Prazo) protege o credor de uma alta de juros. São todas medidas para baixar o custo de crédito, não seu preço.
Um aprimoramento da agenda deveria incluir medidas pró- tomador, como mais transparência, padronizar as informações de crédito, precificar de acordo com o risco, manter a marcação original de cada operação, reestruturar a tributação sobre a intermediação financeira, exigir a certificação no mesmo padrão com que é feito para aplicações e acabar com a presunção da hipersuficiência do tomador, entre outras. Ao que deve agregar-se a remoção do entulho inflacionário.
O modelo de negócio de algumas instituições é um curtoprazismo inconseqüente de taxas altas e inadimplência elevada. No primeiro semestre deste ano há bancos que operaram com taxas acima de 500% ao ano com perdas de inadimplência superiores a três vezes o que efetivamente lucraram. Há instituições que para problemas temporários de liquidez só oferecem o cheque especial a mais de 300% ao ano. É a ante-sala da insolvência. Enfim, as distorções do sistema podem ser corrigidas rapidamente. Lembrando que há segmentos e instituições que funcionam adequadamente.
O momento é oportuno para uma mudança. A economia está frágil e necessita de um impulso forte que pode vir do sistema financeiro. A relação crédito/PIB está abaixo da metade de seu potencial, apontando um espaço a ocupar. O requisito é aprender as lições e colocá-las em prática.
Fonte: “Valor Econômico”,18/09/2018