Tenho acompanhado, um tanto quanto que estarrecido, os desdobramentos discursivos produzidos pela decisão do atual governo em implementar decisão tomada pela maioria da população brasileira em referendo realizado em 2005. As manifestações discursivas, por parte da elite brasileira, podem, creio, ser enquadrados em três grandes grupos.
Há o grupo que está de fato pré-ocupado com o aumento das chances (probabilidade estatística) de uma quantidade maior de pessoas inocentes serem feridas ou mortas pelo manuseio de arma de fogo, dado que a quantidade total de armas disponíveis aumentará. O que é possível fazer para reduzir ao mínimo esta probabilidade no contexto sócio-político brasileiro concreto?
Outro é dos idealistas. Este grupo não é homogêneo, há os que creem que para o brasileiro civil não-profissional de segurança ter acesso a arma de fogo deveria, antes, tornar-se um norte-europeu em termos de educação e escolarização. Há aqueles que falam que se parte da população estiver armada será decretada a guerra civil (alguns ditos revolucionários deveriam querer isso, mas esta é uma outra conversa). Há os que gostariam de banir as armas de fogo da mão de todos civis e dar total monopólio do uso deste instrumento ao Estado, que é, por definição, organização da violência de poucos sobre muitos. E outras derivações.
O terceiro, e aparentemente mais difuso, é aquele composto por quem crê que direito de propriedade (do próprio corpo, do seu patrimônio) só é exequível, concreto, se o indivíduo tiver direito de defender-se de todas as formas possíveis e que ninguém tem o direito de impor-lhe, por meio da violência (inclusive estatal-legal), restrições em relação à auto-defesa. Essa posição implica reconhecer que há chances de acidentes muito danosos ou fatais, mas que estas não são suficientes para negar a menor das minorias, o indivíduo, o direito de acesso aos meios para defender sua propriedade.
Figura 1. Modelo de acesso à arma de fogo normatizada.
A figura 1 demonstra que restringir ou mesmo negar acesso legal à arma de fogo à população civil não profissional de segurança não contribui para a reduzir o acesso ilegal à arma de fogo. Na verdade, fomenta o mercado negro e a criação de monopólio (ou violentos oligopólios) dos agentes que têm poder financeiro e político para burlar as vedações legais e operacionais às armas de fogo, exatamente como ocorre com o mercado de drogas ilegais, conforme argumentado por Milton Friedman.
O fundamento empírico do aprendizado é a liberdade que se tem para experimentar e errar ou acertar. Se olharmos para além de nosso umbigo de “país do futuro” com saídas idiossincráticas fantásticas e olharmos um pouco para o resto do mundo, talvez possamos identificar experiências que possam fundamentar melhor nossas escolhas em experimentar certas soluções.
O Instituto de Pós-Gradução em Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, localizado em Genebra, Suíça possui um centro de pesquisa chamado “Small Arms Survey”, que publica regularmente estudos referentes ao acesso de armas de fogo no mundo. Em 2018 o Centro publicou o estudo “Estimating Global civilian-held Firearms numbers”, sendo Aaron Karp o responsável pela publicação. Me concentrarei em dois grupos de resultados.
O primeiro refere-se à estimativa da quantidade global de armas de fogo que existem em uso no mundo e quais grupos as possuem. Em 2017, civis possuíam cerca de 857 milhões de armas. Forças militares regulares possuíam 133 milhões de armas, as mais letais, sem dúvidas. Os órgãos de obediência estatais (enforcement law), 22.7 milhões. Respetivamente: 85%; 13%; 2%.
O segundo é uma lista de países classificadas por taxa de posse de armas de fogo por cada 100 residentes civis. Os resultados são reveladores.
Como é possível perceber o censo comum é confrontado com o fato de que países como Israel, Brasil e México não estão na lista. No entanto, um olhar mais aproximado, talvez com exceção do Yemen, todos demais países possuem um forte componente cultural em relação ao direito de defender-se com arma de fogo que deve ser resultado da trajetória histórica de ocupação ou defesa de territórios (propriedades e o próprio corpo) contra violências individuais, grupais ou estatais.
Outra confrontação com o senso comum é observar alguns dados sobre mortes por armas de fogo. Em agosto de 2018 foi publicado o estudo Global Mortality From Firearms, 1990-2016 elaborado pelo “The Global Burden of Disease 2016 Injury Collaborators”. Os resultados do estudo:
– O estudo estima que houve entre 195.000 e 276.000 mortes por ferimentos causados por armas de fogo;
– Apenas 6 (seis) países concentram 50,5% destas mortes, em ordem: Brasil, Estados Unidos, México, Colômbia, Venezuela e Guatemala);
– Globalmente a maior parte das mortes por armas de fogo são relacionadas a homicídios (64%), suicídios (27%) e acidentes (não intencionais) (9%);
– A maior incidência das mortes dá-se entre os 20 e 24 anos; estima-se que neste grupo, 34.700 sejam homens e 3.580 mulheres.
Interessante reparar que, com exceção dos EUA, a maior parte das mortes por armas de fogo dá-se em países que não estão na lista formulada pelo estudo do Small Arms Survey. Coincidência ou não, parece haver algum tipo de relação (obscura?) entre os dados apresentados por este estudo e os índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e Liberdade Econômica (ILE).
Armas de fogo são instrumentos dissuasão, de morte, como espadas e outros instrumentos menos insólitos, como picador de gelo ou martelo. A responsabilidade sobre seus usos é de quem os usa. Temos um longo caminho de aprendizado.