No tempo da inflação elevada não se achava quem se dispusesse a fazer a defesa da inflação, fosse como imposto contra a preguiça, ou solução profana para as contas públicas. Mas eram muitos os que atacavam a “estabilização ortodoxa” e as fórmulas do FMI. Assim, a inflação se tornava um crime sem autor, uma fatalidade.
O truque funcionou perfeitamente durante muitos anos, pois nenhum de nossos grandes inflacionistas passou à história com esta designação e todos escaparam de assumir responsabilidades na CPI da hiperinflação que, aliás, nem chegou a ocorrer em razão da falta de nitidez quanto aos possíveis culpados.
Com o protecionismo acontece alguma coisa muito parecida.
Até mesmo Roberto Giannetti da Fonseca (“Em busca da abertura benigna”, de 04/06/18) parece reconhecer que “temos uma economia extremamente fechada” e que a abertura nos faria bem. Mas sua crítica à abertura (ortodoxa?) “unilateral e incondicional” é feroz, quase insolente, e serve para propor um método tão gradual de abertura que mal dá para sentir. Caminhar de um grau de abertura de 22,5% hoje para 30% em 2025, conforme sugere, significa manter o Brasil no último lugar em matéria de abertura, onde hoje se encontra, numa amostra de 46 países estudados em um relatório recente da OECD sobre o país.
É claro que esta fórmula é a do “vamos manter isso aí”, e não há razão para esse gradualismo todo. Não somos um país de empresas nascentes, a começar pelo fato de que a maior parte da indústria brasileira sequer é nacional. De acordo com o Censo de Capitais Estrangeiros no Brasil para 2015 cerca de 1/3 do PIB é produzido por empresas estrangeiras, proporção ainda maior nos ramos industriais cujas associações patronais são as mais militantes na causa protecionista.
Não há empresas nem mesmo adolescentes nessa conversa.
O grau de abertura brasileiro é nada menos que vexaminoso e defende-lo é quase tão ridículo quanto eram os economistas brasileiros que viajavam pelo mundo antes de 1994 dizendo que a inflação brasileira era “normal” e que o viciado tinha controle sobre o vício.
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Nosso grau de abertura não tem nada de normal, estamos com a produtividade estagnada há quase quatro décadas, sendo atropelados pela Ásia, e cheios de monopólios e oligopólios que vivem numa zona de conforto há tempo demais. Tudo muito parecido com a inflação elevada, todos aconchegados e adaptados, até que o dia em que a inflação acabou, e a vida sem cocaína se revelou bastante mais saudável.
Aliás, falando nisso, como parte de seu ataque à “abertura ortodoxa”, Giannetti se mete a criticar “o imbróglio ocorrido em 1994”. Sim, leitor, esse imbróglio atende pelo nome de Plano Real, o evento mais importante da história monetária brasileira nos últimos cem anos. Sim, o que temos aqui, uma vez mais, é a velha arenga contra a valorização cambial ocorrida depois de julho de 1994, e novamente o truque básico: Giannetti apoia a flutuação cambial, mas desde que “confiável e competitiva”, isto é, que seja uma fraude.
Faz mais de 20 anos, é bom recordar: havia um quadro evidente de abundância cambial. A moeda recém lançada flutuou ao sabor das forças de mercado e se valorizou até R$ 0,83 por dólar, equivalente a algo entre R$ 2,15 e R$ 2,50 em dinheiro de hoje dependendo de como se faz a conta. Foi mais ou menos o que tivemos em 2010-11, sem nenhum alvoroço.
O fato é que nós tiramos proveito da abundância cambial, que durou vários anos, para extirpar permanentemente a inflação elevada da vida nacional e, sem falsa modéstia, fizemos muito bem.
A todos os aprendizes, e também feiticeiros consumados, que alegam, como Giannetti, que o Plano Real e sua política cambial foi uma “insanidade” a pergunta é simples: como é mesmo que o sabichão faria melhor para trazer a inflação de 46% ao mês (para junho de 1994, equivalentes a 9.754% ao ano) para 1,6% anuais para o ano calendário de 1998?
Pois é. A “âncora cambial” foi um sucesso e não creio que houvesse uma fórmula melhor, considerada a tibieza das contas públicas e abstraídos os milagres. Por isso mesmo é de uma desonestidade intelectual imensa afirmar que a “âncora cambial” foi “esticada irresponsavelmente” até 1998, sobretudo porque qualquer cidadão que entende dez centavos de câmbio sabe que, até o problema com a Rússia (na verdade, uma crise ampla e de impactos globais muito sérios), se o BCB abandonasse as bandas, o câmbio ia para baixo e não para cima.
Quando, todavia, se apresentou a nova situação trazida pela Rússia em agosto de 1998, tudo mudou e nosso problema passou a ser o de como transitar sem tumulto para outro regime preservando as conquistas do Plano Real. A parte bem-sucedida da solução foi o acordo com o FMI a que devemos o superávit primário que duraria até 2014. Para o câmbio e para os juros, todavia, a solução para a transição não foi das melhores. Mas, depois de uns tropeços, completamos o tripé que nos trouxe até o advento da Nova Matriz.
É curioso que Giannetti envolva nesse assunto o ex-ministro Ciro Gomes, com quem o signatário teria feito uma “dupla” para levar à insolvência “dezenas de importantes indústrias” e não apenas pelo câmbio, mas também pela redução drástica de tarifas.
Ciro Gomes foi ministro da Fazenda durante 117 dias iniciados em 6 de setembro de 1994, portanto chegou a esta posição quando tudo isso de que se queixa Giannetti já estava em andamento. As coisas caminhavam bem, o novo ministro atuou em perfeita sintonia com a equipe, e seguiu as linhas desenhadas pelos seus antecessores. O câmbio já tinha apreciado, e José Milton Dallari, que começou no ministério da Fazenda quando FHC era ministro, já trabalhava com reduções de tarifas de importação para oligopólios recalcitrantes que vinham abusando de seu poder de mercado para sabotar a estabilização.
Por que Giannetti não menciona entre os responsáveis pelas políticas que critica gente como Itamar Franco, FHC, Pedro Malan, e demais economistas associados com o real? Afinal, o “imbróglio” foi obra coletiva.
Naquele momento, como hoje, Giannetti estava do lado errado da História, para dizer o mínimo.
Fonte: “Valor Econômico”, 11/06/2018