Enquanto o brasileiro era hipnotizado pelo ilusionismo maroto do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), duas outras decisões tomadas ontem em Brasília esvaziavam nosso bolso. A primeira, pelo ministro Ricardo Lewandowski, também do STF. A segunda, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, no curto período como interino na Presidência da República.
Numa causa que lhe é cara (leia mais neste post, neste aqui e neste outro), Marco Aurélio decidiu em caráter provisório libertar todos os presos que haviam sido condenados em segunda instância, mas ainda aguardavam recursos de tribunais superiores. A decisão poderia afetar, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até 169 mil presos.
A defesa do mais célebre deles, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, levou minutos para pedir sua libertação. Não deu certo. Por mais absurda que tenha sido a decisão de Marco Aurélio, ele próprio sabia que era uma manobra arriscada, que não tardou a se revelar inócua. Diante de um recurso da procuradora-geral Raquel Dodge, o presidente do STF, ministro Dias Toffolli, suspendeu-a ontem mesmo.
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A guerra de liminares contribuiu para tirar das manchetes as duas outras decisões, que nada têm de inócuas. Lewandowski suspendeu a medida provisória que adiava para 2020 os aumentos salariais do funcionalismo público. Tomada às vésperas do recesso, de modo a permiti-los já no ano que vem, a decisão acarreta um rombo estimado em R$ 4,7 bilhões no Orçamento federal (mais uns R$ 22 do bolso de cada um de nós).
Os privilégios do funcionalismo acumularam nos últimos anos uma diferença salarial média de 270% sobre o setor privado, só na esfera federal. Levando em conta salários pagos por estados e municípios, a diferença média cresceu de 70% para 80% entre 1995 e 2015, segundo estudo do Instituto Mercado Popular.
A decisão de Lewandowki, resultado do pedido de uma associação de peritos da Previdência Social, demonstra a força do lobby do funcionalismo em Brasília. Além de ampliar a distorção salarial entre os setores público e privado, desconsidera por completo a situação crítica das contas públicas.
Não foi a única tungada que empurrou ontem o país para mais perto do abismo fiscal. Numa manobra ainda mais ousada, Maia aproveitou as poucas horas em que ocupou a cadeira da Presidência para sancionar as mudanças que afrouxam a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e permitem a prefeitos estourar, sem punição, o limite de gastos com pessoal quando houver queda na receita.
Maia soltou até edição extraordinária do Diário Oficial para publicar a lei, aprovada pela Câmara numa manobra sorrateira no início do mês. O presidente Michel Temer reagiu em nota, afirmando que teria vetado o trecho que incentiva a esbórnia fiscal das prefeituras.
Em 2017, as despesas correntes dos municípios aumentaram 5%; as com pessoal, 6,8% – ambas acima da inflação de 3,4% naquele ano. É verdade que boa parte dos municípios brasileiros quebrou em virtude da queda na arrecadação. Também é verdade que mais de 80% dependem de repasses da União para pagar suas contas e não controlam as receitas. Mas é uma falácia deduzir que isso justifica o afrouxamento dos critérios de responsabilidade fiscal.
O objetivo da lei não é incentivar a gastança. É o contrário: incentivar a contenção de gastos nos momentos de crise fiscal. O que leva prefeituras à bancarrota é o engessamento das despesas, que dificulta os cortes quando cai a receita. O correto seria o Congresso reduzir a rigidez nos gastos, permitindo demissões de funcionários públicos e cortes extraordinários para que os limites sejam respeitados.
A dimensão da nossa crise fiscal nem preocupa os senhores de Brasília, ciosos de estabelecer suas esferas de poder às vésperas da posse do presidente Jair Bolsonaro. Os ministros do STF querem mostrar a ele quem manda. Maia precisa do apoio de prefeitos e governadores para se reeleger presidente da Câmara. Que mal há em em enfiar mais um pouquinho a mão no bolso de todos nós, naquele momento de distração em que olhamos para o alto, preocupados com a prisão de Lula?
Fonte: “G1”, 20/12/2018